quinta-feira, outubro 15, 2009

A COMUNA LACANDONA: em busca de uma linguagem comum ou uma crítica acadêmica para um autor não-canônico

PABLO GOBIRA
(Texto publicado no jornal O COMETA, em agosto de 2009)

"A comédia da arte fornecia aos atores canevas, ou seja, instruções para que eles construam situações onde um gesto humano subtraído das potências do mito e do destino pudesse enfim se tornar possível. Não se compreende nada da máscara cômica enquanto a compreendemos como um personagem diminuído e indeterminado. Arlequim ou o doutor não são personagens no sentido que Hamlet ou Édipo podem ser: as máscaras não são personagens, mas gestos representados segundo um tipo, uma constelação de gestos. Na situação em ato, a destruição da identidade do papel faz par com a destruição da identidade do ator. É a relação mesma entre o texto e a sua execução, entre a potência e o ato que é colocada aqui em causa."
Giorgio Agamben nas suas “Glosas Marginais aos ‘Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo’”, 1990


O escritor Silvio Colibra, como todos sabem, é o mais conhecido brasileiro hoje. Sua fama no exterior é maior do que a de Paulo Coelho, mas não tão premiado. Muitos perguntariam o motivo desse não reconhecimento da crítica, enquanto o público já o recebe há, aproximadamente, trinta anos através de suas linhas. Talvez pelo caráter inovador de sua escrita rascunhada. Talvez ele não seja mais lido por apoiar lutas que a mídia não consegue recuperar para a lógica capitalista. Possivelmente por atuar de modo crítico, assim como Noam Chomsky e Giorgio Agamben. Claro, todos esses são argumentos inerentes a sua própria obra, conservando as características de “obra de arte” enquanto tal, mas de modo irônico e ex-cêntrico.
Vejamos, por exemplo, este trecho de um de seus textos:

Marcos é surpreendido ao escutar seu nome enquanto colocava uma dose de whiskey em seu copo de vidro. A televisão, agora já tarde, anunciava mais uma façanha do EZLN, responsável pela ocupação de Chiapas, configurando um evento para se transmitir via cabo. O conteúdo da notícia não era muito verossímil, por isso nosso personagem se interessou. A notícia nomeava Marcos como comandante dos terroristas de Chiapas, no México. Claro, era outro Marcos: o “sup”. E a notícia relatava a morte de camponeses, vítimas do conflito entre os terroristas e o exército mexicano. (COLIBRA, 2007, p.37)

Nesse romance, intitulado Comuna Lacandona, de 2007, temos a história de um personagem não tão profundo – Marcos – que é acompanhado em sua rotina diária enquanto assalariado de uma companhia locadora de carros com filiais em diversos países. Ele torna-se, no decorrer do romance, um dos diretores da companhia. Sua rotina, representante da correria cotidiana dos indivíduos no capitalismo contemporâneo, engloba: viagens, deslocamentos entre casa, hotel e trabalho. Este último, muito mais fundamentado nas reuniões, especulações e acordos mais efêmeros até mesmo que o capital aberto da empresa que ele representa. O livro conta a sua história, uma narrativa de sua vida cotidiana enfadonha, tediosa.
Marcos se interessava pelas notícias referentes ao que ele chamava de “radicais sociais”. Quase como uma obsessão, se interessava pelas notícias televisionadas ou impressas em jornais, assim como as que apareciam na internet. Esse interesse “surrealístico” do personagem é explorado por Colibra no intuito de revelar uma transição contemporânea no mundo capitalista. Essa mudança está ligada ao caráter de assalariamento que, acompanhado do desemprego em fluxos e refluxos, domina a lógica do mundo atual. Nessa leitura desse personagem, podemos pensar se não há uma ligação entre “O banqueiro anarquista” de Fernando Pessoa e o Marcos de Colibra. Ambos os personagens se situam em uma posição de conflito, da luta de classes, na qual são levados a “relativizar” sua posição. Porém, no caso de Marcos essa relativização não depende dele, assim como ele também não assume o lado do seu inimigo. Marcos nunca encontrará o subcomandante que possui o seu nome, nunca se colocará de fato do outro lado da luta de classes no livro de Silvio Colibra.
Ao pesquisar na internet informações sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o personagem encontra a Sexta Declaração da Selva Lacandona. A parte que mais lhe agrada, segundo o narrador de Colibra, é esta:

“Nós somos os zapatistas do EZLN, ainda que também nos chamam ‘neo zapatistas’. Bom, pois nós, os zapatistas do EZLN, nos levantamos em armas em janeiro de 1994 porque vimos que já chega de tantas maldades que fazem os poderosos, que só nos humilham, roubam-nos, encarceram-nos e nos matam, e nada que ninguém diga resulta em algo. Por isso nós dissemos que ‘Já Basta!’, ou seja, que já não vamos permitir que nos façam menos e nos tratem pior do que como animais. E então, também dissemos que queremos a democracia, a liberdade e a justiça para todos os mexicanos, ainda que nos concentramos bem mais nos povos índios. Porque nós do EZLN somos quase puros indígenas daqui de Chiapas, mas não queremos lutar só pelo nosso bem ou só pelo bem dos indígenas de Chiapas, ou só pelos povos índios do México, mas queremos lutar junto com os que são gente humilde e simples como nós e que têm grande necessidade e que sofrem exploração e roubos dos ricos e seus maus governos aqui no nosso México e em outros países do mundo.” (COLIBRA, 2007, p.54)

Não é de se estranhar que seja esse trecho o mais interessante para Marcos. Esse personagem de Colibra – que tem apenas o primeiro nome como se o autor quisesse que não descobríssemos a real identidade de seu personagem por ele poder ser inspirado em alguém real – não possui enraizamento na realidade descrita pelo narrador. Ele é esvaziado não como uma estratégia artística, um artifício, mas por seu lugar estar representando uma “progressão” ou “continuidade” de uma classe (a burguesa) que se desmaterializa na medida em que se mimetiza (se proletariza) com toda a humanidade.
Essa desmaterialização é ilusória, uma vez que sabemos que a relação entre capital e trabalho está mais forte do que nunca, mesmo que mais “mágica”, mais “fantasmagórica”, mais distante do entendimento comum, da obviedade. Segundo Francisco Teixeira, todos – mesmo os desempregados – trabalham hoje sem contracheque. Esse fenômeno é descrito no livro Marx no século XXI, recém lançado (2008), e escrito com Celso Frederico.
Ao irmos ao banco fazer os “serviços” que eram de um trabalhador pertencente aos quadros dos bancos, estamos ainda realizando trabalho, só que agora nem sequer recebemos por ele. Muitas vezes ainda pagamos por esse serviço na medida em que utilizamos outros meios para fazê-lo como, por exemplo, quando retiramos extrato de nossa conta pela internet a qual está sendo paga todo mês religiosamente.
O personagem de Colibra parece querer descobrir seu lugar ao mesmo tempo em que consome o produto “EZLN” comercializado pela mídia. A estranheza que ele sente por ver que o EZLN é diferente do que o noticiário mostra não o faz se revoltar, mas refletir. Essa reflexão, que é separada de uma indignação concreta, surge como um processo de aceitação da ficcionalização provocada pelos meios de comunicação aos quais ele tem acesso. Ele acha comum, normal, banalizado. A linguagem do mundo é aquela da ficcionalização do fato, a separação de todos do que realmente existe e acontece.
Essa sua reflexão chega a tal ponto que ele passa a questionar se a declaração que ele leu não teria também sido modificada em sua tradução ou pelos ativistas que se dizem apoiadores do EZLN. Chega-se ao ponto de acreditar em possibilidades que vão além da importância do que é dito. O que não foi dito ou o que foi modificado é mais importante do que as críticas práticas e diretas que o documento apresenta. O personagem, aos poucos, ao invés de se perder e entrar em uma crise de seu lugar na luta de classes, passa a se interessar pelas notícias e suas pesquisas enquanto uma colagem de nova narrativa que ele será o primeiro a ter acesso e, talvez, pode até mesmo ser o único a conhecê-la, mesmo que consiga tempo em sua agenda para lançá-la na internet. Um sujeito com condições medianas constitui um processo de composição.
(Continua...)

quarta-feira, outubro 07, 2009

ESPAÇOS DA MEMÓRIA ou A MEMÓRIA FOI PARA O ESPAÇO: UMA LEITURA DA ITABIRA/MG DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

DE:
Pablo Gobira
Josué Borges
(Texto publicado no jornal O COMETA em setembro de 2009)


Com o objetivo de conhecer a cidade de Carlos Drummond de Andrade fomos visitar Itabira a convite de Waldir Barcelos e ciceroneados por Marcelo Procópio. À medida que íamos andando pela cidade e conhecendo os estabelecimentos, o editor do Cometa insistia em nos apresentar aos itabiranos como “aqueles que desconstruiriam Drummond” ou “aqueles que destroem os poetas”. Ao final da visita acabamos vendo – ele e nós – que isso, mesmo que fosse o objetivo mais concreto (e nada discreto) de nossa visita, seria desnecessário.
A destruição de Drummond é desnecessária devido ao seu lugar relegado muito mais aos espaços de um cânone formado pelas legitimações institucionais e/ou pelo poder público em suas intenções que deturpam mais que preservam os feitos do poeta itabirano. Na academia todos sabemos o quanto o poeta é conhecido. Nas escolas, sobretudo nas séries do ensino médio, o poeta é rememorado nos livros. Porém, qual é a função do poeta no contexto contemporâneo? O que é ser poeta? O que é ser esse poeta Drummond do qual os brasileiros tanto ouvem falar?
Claro que essas perguntas são mais lançadas aos leitores do que caberá a nós responder. Há nas perguntas feitas acima uma possível relação a ser traçada com o que há em Itabira: esse movimento de institucionalização de uma memória individual a partir dos espaços.
Sabemos que a modernidade, ao mesmo tempo em que possui um impulso desconstrutor da tradição, também constitui espaços que preservam o tradicional ou seus outros monumentos e documentos. Os museus e arquivos são erigidos como templos da institucionalização de saberes e vidas, centralizando, no caso da literatura, em alguns autores que por diversos motivos (isso mesmo: motivos) tornam-se o que chamamos: parte do cânone.
Itabira torna-se um museu a céu aberto. Um museu muito associado à figura de Drummond. Diversos são os espaços que propõem abrigar sua memória. Ao mesmo tempo em que se propõe preservar, a cidade é colada no que foi o Cauê.
Mesmo que o espaço-memória fosse um lugar fragmentado, fragmentário e lacunar, as lacunas itabiranas, criadas em relação ao poeta Drummond e seu pensamento, são crateras de dimensões proporcionais ao buraco do Cauê. A exemplo disso, o Memorial Carlos Drummond de Andrade – onde ouvimos um cidadão comum nos dizer: “O Cometa já tá fazendo 30 anos? Rapaz, Itabira num mudou nada, continua sendo uma capitania hereditária” – edificado junto ao Pico do Amor – um mirante de onde se pode avistar, dentre outras coisas, o Buraco do Cauê – com propósito de guardar os feitos e escritos importantes do Poeta de Ferro. O espaço não corresponde ao autor de seu projeto, o arquiteto Oscar Niemeyer, tampouco cumpre a função de memorial. Semelhante, mas opondo-se diametralmente ao poema “Retrato de família”, o espaço constitui-se mais em um álbum de fotografia deteriorado, a diferença cabal entre este e aquele descrito pelo poeta é que, no retrato pendurado na parede, Drummond recorre à memória para descrever fisionomias e atitudes dos personagens da imagem. No Memorial, o “turista” visitante não tem sequer linha e agulha para reconstruir os passos da fotografia drummondiana, ainda que com isso fizesse um patchwork. Antes, perde-se num emaranhado de imagens e descaminhos opacos e incompreensíveis que pairam como um clima de omissão.
Outro passo interessante dos Caminhos é a Fazenda do Pontal, uma réplica da Fazenda Doze Vinténs ou Fazenda dos Doze, que pertencia ao pai de Drummond e que deu origem, diz a crítica, ao poema “Infância” – poema cujos primeiros versos servem hoje de mote para festas de peão. A réplica aconteceu, a recriação do ambiente da infância drummondiana não. No lugar dos campos onde o pai campeava, hoje, do imenso espaço vazio dentro da casa, a vista que se tem é uma formosa lagoa de rejeitos da mineração. Ao fim e ao cabo, o passeio pode concluir-se com a visita ao Centro Cultural Carlos Drummond de Andrade, defronte à Igreja Universal do Reino de Deus, e encontrar o poeta que tanto criticou a mineração, em uma cidade onde tudo Vale magistralmente, sentado em uma pedra de minério, chegando à conclusão de que em Itabira “tudo Vale à pena”.
A cidade teve seu momento de levantar o poeta às alturas. Os hotéis, a casa de Drummond, a fazenda dos avós de Drummond, o Centro Cultural, etc., jogam com essa idéia do poeta como ícone pop da cidade. A cidade procura criar uma indústria que movimenta a cultura ao redor da imagem do poeta. Existe até mesmo uma pesquisa em andamento sobre essa relação da mineração da Vale com o uso de Drummond como o novo principal motor da economia da cidade. Vamos aguardar as conclusões do pesquisador, doutorando em Administração na UFMG, Prof. Luiz Alex Saraiva.
“Yo no creo en poetas, pero que los hay, los hay”, seria uma possibilidade de afirmação reflexiva que nos incita a entender a – mais do que acreditar nela - existência de seres separados das pessoas “normais” que podem se expressar de forma diferente destas no contexto contemporâneo. Os poetas seriam seres mágicos que alcançam um status diferente dos outros seres. Seriam os “capazes” de constituir “outra coisa” que não o “texto comum”. Seriam os criadores da linguagem impossível que pode ser compreendida sem ter compreensão. Seriam os que fazem a alienação em movimento de aproximação do texto com o leitor. Construtores do oximoro.
Podemos ensaiar que a decadência do poeta Carlos Drummond de Andrade que vimos em Itabira – no abandono dos espaços com o não envolvimento dos cidadãos da cidade neles – é sinal de um movimento que há contemporaneamente em se entender os artistas como pertencentes apenas a lugares específicos (nos meios especializados; nos meios intelectuais; nos centros culturais; nos usos políticos específicos; etc.), separados do restante da população. Por mais que o poder público tente incluir o poeta como ícone da cidade (incentivando os hotéis a fazê-lo, colocando estátuas e homenagens nas ruas, criando eventos como feiras da produção com frases do Drummond nas placas, etc.), o artista (e sua imagem celebrada) se torna separada e distante do cotidiano das pessoas. Desse modo, cada coisa fica em seu lugar.
Essa decadência é sinal de frustração. Essa frustração não deve ser vista como pessimista, mas como negativa. Um poeta com os versos de Drummond sendo negado no cotidiano é sintomático. Um poeta que canta o cotidiano não ser escutado mais a não ser nos ecos de seu nome é algo estranho que aliena (de outro modo) o escrito. Até mesmo as condições precárias de manutenção a que a memória do célebre está relegada é uma prova de que a frustração pede passagem em busca de uma mudança de recepção dessa produção: de passiva para resistente.
Por fim, este texto segue a tradição Drummondiana sobre a qual versa a história de existir uma pedra no meio do caminho. Em Itabira essa pedra está quase destruída. Ufa! Da destruição espera-se que nasça algo em contraponto. E agora, no meio dessa balbúrdia, o que nos resta? Resta-nos criar mais um espaço cultural: o Centro Cultural Buraco do Cauê (CCBC ou CeCuBuCá, o que fica quase uma linguagem do macaco - guinlagem camaco - como foi-nos ensinado pelos nativos e/ou não). No fundo, encontramos o pico destruído e o poeta em decadência sentado em uma pedra. A nossa proposta é de outra coisa surgir em meio aos escombros. O que será? Não sabemos. Queremos discutir na praça pública como fizemos quando passamos por Itabira, com os vigias, seguranças e outras pessoas. A cidade de Drummond vale muito a pena ser conhecida.

sábado, julho 18, 2009

A arte e alguns de seus ladrões: os 40 de São Paulo

Pablo Gobira
pablogobira@cafecombytes.com

Este texto introdutório não seria necessário ao considerarmos que o que ele propõe apresentar são dois textos que falam por si só.

O primeiro, “Dura ars sed ars”, é um manifesto de repúdio à prisão da jovem Caroline Pivetta da Mota. Essa prisão foi feita na 28ª Bienal de São Paulo. O motivo da prisão foi a participação da jovem em um grupo de 40 pichadores que realizaram intervenções no prédio da Bienal. Tais pichações revelavam que ali no prédio não havia exposição de nada, apenas do “vazio”. A partir da constatação do fato, os autores do panfleto, @s amig@s da próxima insurreição, inserem os 40 de São Paulo na história da contestação do sistema capitalista que, com a arte moderna, é realizada na junção das lutas proletárias com as propostas do fim da arte enquanto separada da vida.

O segundo panfleto, “O motivo de sermos todos Susto’s”, também d@s amig@s da próxima insurreição, propõe apontar os dois modos de cooptação da intervenção dos 40 de São Paulo. Essa cooptação ocorreu tanto autoritariamente/politicamente quanto artisticamente, deturpando a prática e a finalidade das pichações que foi a expressão da busca por visibilidade de uma luta por mais vida. Era essa a reivindicação daqueles pichadores que, ao não serem representantes de ninguém, tornam-se pertencentes de toda uma história de contestação como apontado no primeiro panfleto e reforçado no segundo.

Por fim, é preciso dizer que tais iniciativas, tanto as contestatórias quanto as solidárias, estão aumentando na medida em que a sociedade contemporânea mergulha em um caldeirão de lutas que não podem mais ser escondidas. Não podendo ser contidas, resta ao sistema capitalista tentar contê-las, como ocorreu na Itália e, mais recentemente, acontece na Grécia, havendo explosão de protestos após a morte de um jovem de 15 anos.

Por haver tentativas de contenção dessas expressões, devemos discuti-las, primeiramente listando-as, mas, sobretudo, apoiando-as na medida em que são contra as hierarquias, contra o autoritarismo, contra a lógica do mercado e do estado que são expressões da não-lógica, da não-verdade: a mentira tornada verdade.
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Dura ars, sed ars
(a arte é dura, mas é arte)

Panfleto em solidariedade a Caroline Pivetta da Mota, a ser amplamente divulgado, reenviado eletronicamente, reproduzido, entregue pessoalmente a amig@s e conhecid@s.

A ação de 40 jovens pichadores, no último 26 de outubro, na 28ª Bienal de São Paulo, ação que resultou na prisão de Caroline Pivetta da Mota, deve receber a mais irrestrita solidariedade de todos aqueles que são, tão-simplesmente, amigos da liberdade. Neste plano, tudo pode ser resumido nisso: trata-se da liberdade de intervenção artística, que marca há quase um século a arte moderna e de vanguarda. Daí que podemos dizer sem medo: aqueles que hoje aprisionam e processam Caroline e perseguem seus companheiros do Grupo Susto's são inimigos da arte moderna e da liberdade artística. Os organizadores da Bienal, a Polícia e o Ministério público de São Paulo são esses inimigos e devem ser denunciados por todo canto como um só "bloco histórico" da reação anti-artística do velho stableshment cultural.

Mas algo mais fundamental se manifesta aí: a contestação à sociedade burguesa que atravessa e ultrapassa a expressão artística. Já há duas décadas a juventude proletária, individualmente ou organizada em pequenos grupos temporários, atacam o urbanismo, a destruição da cidade moderna pelo desenvolvimento capitalista, que a transforma em território da solidão, da anticomunicação generalizada, do vazio e do medo. Prédios enormes e frios, que nada mais expressam que a privatização da vida (a vida privada da própria vida), a separação dos indivíduos e o poder totalitário da mercadoria e do Estado, bem como praças que-já-não-são-mais-praças e monumentos da história oficial, têm sido objetos constantes de intervenção das pichações. Essas ações "buscam 'melar' a urbanização modernizadora do capitalismo e romper com o anonimato e a desindividuação próprios da 'massificação'" (revista contra -a-corrente, nº 9, set./dez. 1999).

O sistema tem buscado assimilar e recuperar essas formas de contestação, principalmente com a sua transformação em formas nobres de "arte". Bancos, instituições judiciárias de recuperação social de jovens, Secretarias Municipais e Estaduais de Educação, Projetos Sociais dos mais diversos governos e Galerias de Arte financiam o uso moderado de pinturas de murais por pichações "artísticas". A pichação se torna aí uma técnica "neutra", em campanhas de cidadania e integração cultural e moral repressiva e policial de jovens proletários às instituições do sistema. A conseqüência inevitável desse recuperador processo de "segurança social" é já o surgimento de Galerias de Arte, que trazem para o espaço colonizado dos ambientes "artísticos" comerciais a chamada "arte de rua". É justamente este o caso da Galeria "Choque Cultural", em Pinheiros, São Paulo, também atacada por pichadores em setembro deste ano.

O que torna insuportáveis as ações de Carol e de seus companheiros é justamente a recusa a essa integração, recusa particular que expressa - num intolerável mau exemplo - a recusa de milhares de outros jovens nos bairros proletários, que nas periferias brasileiras, não menos do que nas quentes banlieues francesas, dizem conscientemente não! à docilidade policial das instituições que buscam integrá-los à obediência. Insuportáveis ainda mais porque tais ações levam a recusa aos territórios aos quais a própria política recuperadora do sistema sentiu-se bem à vontade para, sob a forma morta de "arte", levar a negação proletária: as Galerias e Bienais. O escândalo se torna aí mais terrível, pois desautoriza publicamente ex museum,, no próprio terreno em que se ensaia a recuperação, a ousadia do aparato cultural do sistema em apropriar-se seja das formas estéticas de contestação, seja da arte moderna, cujo desenvolvimento, há quase cem anos, é inseparável da contestação a esse mesmo aparato.

O aparato cultural do sistema não continua a arte moderna, mas a amordaça, recuperando-a. Já Carol e seus amigos, que não reivindicam fazer arte, mas contestá-la, justamente desse modo são herdeiros da grande arte moderna e de vanguarda do século 20... herdeiros legítimos, e precisamente porque recusam apropriar-se dela.

Liberdade para Carol!
Fim das Bienais e Galerias!
Pela liquidação do aparato cultural do sistema!

Amig@s da próxima insurreição

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O MOTIVO DE SERMOS TODOS SUSTO’S
A invisibilidade e as máscaras como arte de viver

Reconhecemos o esforço dos donos do sistema em tentar conhecer os membros do “grupo Susto’s”. Então se assuste: o Susto’s está em toda parte. A verdadeira solidariedade é essa, carnal, mimética, que não encontra nomes ou culpados, mas ações que revelam o que há por trás do véu. É esse o único momento em que o segredo (de quem pratica a crítica ao que está estabelecido) não é um segredo, mas resistência, humanidade. Outras solidariedades, como a transmitida pela mídia aos “flagelados de Santa Catarina”, são apenas enfoques do sistema da miséria humana direcionados para o entretenimento e o consumo da solidariedade através do envio de mercadorias que são dadas para outras pessoas que estão necessitadas em um momento específico que foi tornado público, televisionado, monitorado e transformado nessa outra mercadoria específica: a miséria humana advinda de uma tragédia ambiental (dentre várias possíveis).

O “Susto’s” está em todo lugar, tal como os amig@s da próxima insurreição e @s inimig@s da economia política. Citando os zapatistas de Chiapas e @s companheir@s de Oaxaca, podemos repetir: esse nosso véu não é como o véu que encobre a lógica do capitalismo. O véu mágico do capitalismo nos faz ver riquezas e não misérias, faz ver necessidade onde há o banal e inútil, nos faz esquecer as reais necessidades humanas e passar por cima dos outros que se tornam mercadorias vivas, circulantes, distantes de si mesmos. Os nossos véus são máscaras, são marcas que nos identificam enquanto nos escondem, nos aproximam quando nos distanciam, nos fazem querer viver quando nos fazem objetos de hierarquias e trocas de mão-de-obra na sua crise constante do sistema. Nós aceitamos ser criminos@s sociais e inimig@s da economia política, pois é como a lógica do capitalismo nos nomeia ao nos ver com fome de vida e não com a fome de bugigangas. A vida é dura se queremos vivê-la.

É tudo isso que o ato dos 40 de São Paulo/SP, sob a máscara do Susto’s, representa de modo não ideológico, mas como expressão de uma tática por mais vida¬.

O sistema e sua lógica são inteligentes e sabem da impossibilidade de criminalizar toda a periferia das cidades, pois, como a Caroline Pivetta da Mota, as periferias também são Susto’s. Desse modo, pôs-se em prática duas contra-táticas que, desde a virada do século 19 para o século 20 é a estratégia dos aparatos do capitalismo, sobretudo o cultural:

1) Centralizou-se a punição nos nomes da Carol e do Susto’s, enquanto representação da sua crítica, chamando-os com o vocabulário da linguagem que possuem há mais de um século. Assim, o Susto’s se torna uma gangue e, via Caroline, passa-se a procurar seus líderes (http://suvacodecobrahiphop.blogspot.com/2008/12/picho-para-o-povo-olhar-e-no-gostar.html);

2) Articulou-se o movimento de recuperação que se deu em tempo real. Alguns artistas reproduziram, imediatamente, levando para o centro da 28ª Bienal de São Paulo as pichações que se posicionavam como crítica àquela lógica da arte sem vida, vazia. Esses artistas esvaziaram as pichações da vida aplicando-as dentro de uma galeria com neon colorido. Para esses artistas as ações dos pichadores foram “válidas”, devendo ser incorporadas e validadas (http://kratonton.wordpress.com/2008/11/27/pichadores-na-galeria-de-arte/).

Devemos repetir: o aparato cultural do sistema não continua a arte moderna, mas a amordaça, recuperando-a. Já Carol e seus amigos, que não reivindicam fazer arte, mas contestá-la, são herdeiros da grande arte moderna e de vanguarda do século 20... herdeiros legítimos, e precisamente porque recusam apropriar-se dela.

Por fim, o Susto’s, assim como os zapatistas e @s inimig@s da economia política não são “grupos”. Eles não existem dentro das possibilidades do aparato político, econômico e cultural do capitalismo. Nós também, @s que escrevemos este segundo manifesto, não estamos articulados com, ou sabemos quem são @s primeiros companheir@s que afirmaram Dura ars, sed ars. Por concordarmos com eles nos indignamos, solidarizamos, e divulgamos o Dura ars, sed ars, pois sentimos necessidade de expressar o desejo de vida que temos. Justamente por isso podemos dizer que conhecemos e reconhecemos todos os companheir@s amig@s da próxima insurreição!

Por isso mesmo, novamente afirmamos:

Liberdade para Carol!
Pelo fim das bienais e galerias!
Liquidação do aparato cultural do sistema!

E acrescentamos:

Pelo fim da economia-política do capitalismo, mestra das hierarquias e das separações típicas desse sistema de opressão!


Amig@s da próxima insurreição

O BOM E O MAU LIVRO

Pablo Gobira
O Cometa, Belo Horizonte, 2007

Dizem por aí que os Salões de Livros estão esvaziando de leitores, assim como as Bienais. Apesar do Veríssimo dizer que se impressiona com a grande procura de livros pelas crianças nas livrarias – lógico, falamos de Harry Potter –, não sei se é uma verdade que, nesse meio, a quantidade de “leitores” vêm aumentando.

A verdade mesmo é que eu não gosto de pensar na literatura, ou melhor, na leitura, desse modo tão direcionado e estrito. Prefiro sinalizar conceitos que são mais específicos e os quais gostaria de expor em síntese: a) Mercado Editorial, compreendendo APENAS as editoras, distribuidoras e as livrarias, ou seja, a detenção dos meios de produção e de distribuição do “livro”; e b) leitor, compreendendo simplesmente “aquele que lê”.

A acepção de “ler” ou “leitura” é a chave da discussão. É, também, o que o mercado editorial esconde do público em geral, apoiado nos mecanismos ideológicos que lhe competem, enquanto uma discussão necessária e que passa pela questão da autoria e dos tais direitos autorais.

Desse modo, a sociedade contemporânea necessita que a noção de “leitura” e “ler” seja ampliada radicalmente. Devemos lembrar de Paulo Freire e sua idéia de “leitura de mundo”, como concepção necessária para o educador se desenvolver junto ao educando, a ponto de se entender o segundo como tão competente para a leitura de algumas significações quanto o educador em outras.

Porém, o mundo contemporâneo não considera que “ler o mundo” é tão importante quanto “ler um livro”. Torna-se importante, epistemologicamente, compreender que o ato de ler transcende: o objeto livro; e os objetos de suportes virtuais com sistemas semióticos amparados pelo verbo.

O ato de ler atinge outras linguagens como a fílmica e a musical, a teatral; e gêneros como a telenovela, as séries, as mini-séries, etc.

A centralização (como objeto) da leitura no livro e nos periódicos como únicos meios de se atingir o “espaço da cultura” são apenas mais algumas estratégias de polarização implementadas pelo mercado (e aqui não estou falando somente daquele editorial que citei) que gera uma separação entre o “bom” e o “mau” livro e de sua importância.

Claro que a idéia não é a abolição da leitura do livro. Essa discussão se aproxima daquela outra de caráter político-cultural que envolve o mercado fonográfico e o “problema” do MP3.

Ao optar por entender a vida como uma constante leitura, há uma ampliação do conceito de “livro”. Também há o desprendimento da idéia de existência do “bom” e do “mau” livro. Assim, renova-se a esperança naquelas crianças que se enfileiram nas livrarias para comprar o livro da Rowling, ou das outras que fazem filas nas bibliotecas. Pois mesmo submetidas a um artifício do mercado editorial, sua vida tem mais chances de voltar a um normal de “apatia” a esse mercado, do que se submeter inteiramente a ele. Também, quem é que pode se manter mesmo como um leitor-comprador assíduo em uma sociedade como a ocidental?

Há que se mover para que uma nova consciência se espalhe com a discussão do acesso à cultura enquanto construção coletiva sem essa separação existente entre os que podem e os que esperam que seja interessante dar-lhes esse poder. Deve-se estimular algo próximo às primitivas e constantes grafitadas em muros, ou rabiscos encadernados, mesmo que aquelas odiadas e informais.

Entendendo a leitura como leitura de sentidos, assumimos que todos também os produzimos permanentemente. Assim, não há como se realizar outro patenteamento além da força de trabalho que se vende nesse dia-a-dia e que nos separa da real ação de transformação do mundo.

O que sobra, feliz ou infelizmente, é o mercado editorial chorando e se satisfazendo com os fluxos e refluxos dos consumidores em Salões e Bienais que estão longe de serem dos livros, mas são, veríssimamente, das livrarias que neles expõem suas mercadorias secularmente destinadas aos letrados.

E assim pergunto: quem, afinal, são os letrados?

UMA NOVA _______ É POSSÍVEL

Pablo Gobira
Jornal O Cometa, Setembro/2007

Desde antes da década de 1970 já existem elogios à nossa classe dominante. E aqui quero chamar de “dominante” aqueles que controlam os meios de produção e não, simplesmente, aqueles que detém poder. Até o Foucault já nos mostrou que o poder - e suas relações – está em todo lugar com alguém mandando e sendo mandado. Porém, a detenção do controle dos meios de produção apenas alguns possuem.

Fundamentando-me em Darcy Ribeiro (o crítico, por favor!), também é necessário resgatar o conceito de elite com o qual ele trabalhou. A esse conceito, no caso latino-americano, devemos anexar um adjetivo que o autor associou: elite externa. Então, para Darcy, a elite seria essa classe controladora dos meios de produção. A elite brasileira seria essa elite, com a característica de que produz para os interesses externos ao país e não aos internos, do seu povo, da nação, ou qualquer outra entidade.

O antropólogo afirma que, desde a colonização, “aqui no Brasil se tinha inventado ou ressuscitado uma economia especialíssima, fundada num sistema de trabalho que, compelindo o povo a produzir, o que ele não consumia – produzir para exportar – permitia gerar uma prosperidade não generosa, ainda que propensa desde então, a uma redistribuição preterida.”

Na verdade, em uma das vezes que o antropólogo usa essa noção, ele o faz de maneira muito perspicaz. Aliás, esse é um adjetivo que cabe ao intelectual em qualquer área que atuou. Lógico, algumas revisões são necessárias. Portanto, vamos a uma delas.

O texto ao qual me refiro é o ensaio “Sobre o óbvio”, do livro Ensaios Insólitos, de 1979. Nele, o autor realiza, de maneira irônica e... perspicaz, uma crítica à colonização da América do Sul. Seu texto desconstrói algumas teses (consideradas ironicamente como “obviedades”), tais como: “os pobres vivem dos ricos”, pois “sem rico o mundo estaria incompleto, os pobres estariam perdidos”; “os negros são inferiores aos brancos”; e “nós, brasileiros, somos um povo de segunda classe, um povo inferior, chinfrin, vagabundo”.

Depois de negar as quatro obviedades, sendo que a primeira era a de que o Sol gira em torno da Terra, Darcy começa a construir a tese da riqueza do Brasil que está sendo extraída e levada para fora do país, assim como ocorre em todos os países latino-americanos. A verdade é que o texto é bem atual, levando-se em conta esse contexto de debates que, hoje, se direcionam para o Plebiscito Popular pela anulação do leilão da Cia Vale do Rio Doce, privatização que teria sido fraudulenta em 1997 (http://www.avaleenossa.org.br).

Diversos exemplos são dados pelo autor que leva a crer que, a qualquer momento, não apenas a elite, mas todos os latino-americanos irão fazer as malas e – veja que não estou usando o verbo errado, não quero dizer “ir”, mas – VOLTAR para a Europa. Para Darcy Ribeiro, a nossa elite é a que vive melhor no mundo. Também é a mais sábia na profissão de destruir vidas, utilizar mão-de-obra barata (para não dizer escrava até hoje), e ainda se dizer responsáveis socialmente. Para ele, “os culpados de nosso subdesenvolvimento somos nós mesmos, ou melhor, a melhor parte de nós mesmos: nossa classe dominante e seus comparsas”.

Tudo no texto do antropólogo parece nos dizer o motivo para o “país não ir pra frente” é a exploração colonial, a neocolonização contemporânea, e ainda a ajuda dada pela elite interna para a elite externa que é com quem eles querem se parecer. Qual seria, então, a saída proposta pelo professor Darcy Ribeiro nesse contexto de 10 anos de seu falecimento?

O que se pode deduzir desse seu raciocínio é que se tivéssemos uma elite mais comprometida com o desenvolvimento sócio-econômico da nação e suas virtudes, tudo estaria melhor. A esperança é sempre a última que morre nesses casos.

O que se espera é que a elite se solidarize? Ou devemos esperar que a elite não queira mais conviver com a fome e a miséria? Ou, ainda, devemos esperar que toda a mão-de-obra morra dessa fome e dessa miséria? Não! A elite, como o disse o Professor Darcy, não é burra o bastante para matar os únicos capazes de lhe servir, mas é inteligente o bastante para manter longe dos espaços do “saber” elitizado aqueles que a servem enquanto ocupam as universidades públicas.

O interessante na obra do antropólogo é que esta questão é uma incógnita a se discutir. O “papel dos intelectuais no contexto político” fica claro na medida em que a crítica o discute nas academias. Agora, o “papel da elite” vai se dissolvendo no meio dos textos levando a apenas aquela dedução salientada.

A “elite”, quase nunca antes de Darcy Ribeiro, foi associada à exploração de mão-de-obra, detendo os meios de produção nacionais no desejo de fugir daqui com o que pilhou. Com todo esse distanciamento entre os comandantes e os comandados, parece ficar difícil, até para os “pensantes”, imaginar o fim dessa separação no mundo. Principalmente nesse contexto latino-americano descrito tão bem pelo antropólogo.

Hoje, fora das academias, a agenda política da nação – assim como se vê nas mídias diversas – não lista a discussão sobre: se “ser” ou “ter” elite é algo bom. Esquecemos que existem os que possuem e os que não possuem.
Lembra-se que existem os “sem voz” somente quando se deseja escutar os seus discursos, ou quando os mesmos valem alguma coisa para a lógica do mundo: um livro que seja, pois os livros também são mercadorias. Como exemplo temos os nichos de mercado que se formam das alteridades.

Estamos mais preocupados, é verdade, com os oxímoros: “apagões aéreos”; ou “políticagem sem corrupção” (porque, devemos lembrar, o conceito de política não é o mesmo de “representação política”).

Nesse contexto de vazio em termos de discussões teórico-práticas no cenário político, deve ser dito por fim, que não somente para o antropólogo, mas para o Fórum Social Mundial, o Fórum Social Brasileiro e, ainda, o Econômico, a palavra que preenche a lacuna no título deste texto é, infelizmente, elite.

Por uma crise anti-capitalista nas crises do capital monopolista

(Publicado no Jornal O Cometa, dez/2008)

Pablo Gobira

Como o leitor já sabe, estamos sendo influenciados por uma crise do capital norte-americano (nessas preliminares é importante lembrar que o capital não tem pátria em sua circulação). Sabemos disso não é a toa. Sabemos dessa crise através da influência que ela exerce sobre todos os seres humanos do planeta. Porém, este texto não é mais uma tentativa pateta e patética de discursar sobre uma crise já esperada para o início do século XXI, ocasionada pelo processo de mudanças do movimento de produção de valores na sociedade do capital.

Acontece que essa crise vem em um momento especial: pouco tempo após as experiências de ações globais anti-capitalistas entre 1994-2002; após as recentes mega-marchas de Oaxaca (2006-2007), no México; e as recentes ações dos estudantes e professores italianos que dizem “nós não pagaremos por sua crise” (uma possível fonte para leitura de relatos dessas práticas pode ser lida no site: http://www.midiaindependente.org).

Atualmente, sabemos que fábricas estão sendo fechadas, empregados sendo demitidos, fundos de pensão destruídos, assim como todos os outros “direitos” conquistados na relação entre capital-trabalho. Alguns modelos conservadores, sinalizadores de novas formas de sustentação hierárquicas da sociedade através do Estado são aplicadas tentando salvar o Mercado auxiliando os administradores da crise.

Porém, é importante que se diga que essa crise é sofrida desde o acordo de Bretton Woods (década de 1940), e carnalmente experimentada desde a década de 1980, no processo de globalização do capital. Entre essas reuniões, destaca-se a do dia quinze de novembro de 2008, em Washington/EUA, que reúne os vinte países que possuem as maiores economias do mundo.

Para nos comunicarmos com os “donos do mundo”, nos Estados e nos Mercados, existe apenas uma linguagem a ser falada, pois todas as outras já se integraram ao sistema. A única ainda não cooptada em sua maneira mais radical é a metodologia de ação horizontal que elimina qualquer inclusão do Estado e do Mercado em sua lógica, ou seja, um acirramento da luta de classes auxiliada pelo aumento da cotidianização dessa luta, como experimentado (ainda precariamente) nos exemplos anteriores (três parágrafos acima).

“Como assim?”, perguntaria o leitor. Do mesmo modo que a crise se alastra rapidamente alcançando economias ainda não totalmente integradas à lógica do capitalismo, deve-se gerar meios de cooperação entre as pessoas de modo a não constituir hierarquias. Assim, elimina-se o privilégio de certos setores da sociedade (partidos, nova esquerda, sindicatos, etc.) de manter o monopólio da política na sociedade onde tudo é mercadorias. Isso foi ensinado pelos exemplos práticos das ações globais anti-capitalistas dos últimos anos.

“Como assim?”, continuaria a perguntar o leitor. A saída se dá através da metodologia de ação política coletiva enraizada no dia-a-dia. Assim como o G20 se reúne, nós nos reunimos. Optamos por estar em nossos locais de trabalho (de venda da mercadoria força de trabalho), no lazer (no momento de consumir) e etc., revertendo a lógica já dada.

O sistema não entrou em crise, ele permanece em crise desde o momento em que as pessoas se vêem como uma mercadoria (e são forçadas a se colocar nessa situação através da proletarização do mundo) ou como consumidor dela, que apenas pode se pensar e identificar com o que compra ou vende. A subordinação à lógica das trocas de mercadorias no grau “mágico” atual é contraditório e crítico. Por esse motivo, negá-lo significa fazer o que ele não comporta: relações sem mediações mercadológicas e hierárquicas; organizações de ações que o contestem invertendo o modo como os donos do mundo se reúnem.

Com Francisco Teixeira em Marx, ontem e hoje (2008) podemos compreender a crise teórico-praticamente: “A crise [e aqui o autor se refere a como os teóricos – que não se enraízam na prática – vêem o movimento contraditório do capitalismo] não é mais vista como resultado das contradições inerentes à forma mercadoria, mas, sim, como produto de uma inadequabilidade entre os métodos e as técnicas de organização do trabalho e as novas exigências de gestão requeridas por um capitalismo internacionalizado.”

Administrar a crise é a atitude daqueles que querem manter o capitalismo durante os seus engasgos, propondo novas formas de gestão. Como sempre, são nesses momentos que vemos a separação materializando-se, pois são vinte lideranças dos países que tentam resolver a crise, e o restante sofrerá as conseqüências já elencadas acima.

Os estudantes e profissionais do ensino italiano – com o apoio de diversos setores da sociedade – mostram como devemos discutir a crise do capitalismo: nas ruas, no dia-a-dia, e sem mediações (para mais informações pesquise na internet os comunicados dos manifestantes ou visite: http://www.midiaindependente.org).

É claro que esse mundo “a parte” não se lê nos jornais, a não ser quando vemos algumas teorias (perdendo seu caráter prático) sendo estabelecidas como mais um produto que faz vender jornais, faz vender livros, faz a idéia circular como mercadoria. É nesse momento que aprendemos: a idéia não escapa de se separar da vida humana, pois se torna um produto chamado ideologia.

A não-separação da luta de classes do cotidiano, assim como a não separação – de quem age para si daqueles que agem para os outros se martirizando – é o que pode se chamar de crise anti-capitalista que, como mostrou Benjamin em suas “Teses sobre o conceito de história”, é o momento de perigo que sofremos e podemos utilizar a favor da humanidade.

Se não for desse modo como muitos já mostraram, eu (do mesmo modo que você que aí está sentado tranquilamente lendo este texto) também não quero que mude nada, quero tudo igual.

Em resumo, o capitalismo é a arte de domar crises. Essa máxima é possível apenas por que a arte se rendeu a sua lógica, como mostra o próprio Benjamin, Debord e, até mesmo, Agamben. Tentando pensar em outras discussões globais do capitalismo, vem logo a mente a crise ambiental.

Como todos vêem todos os dias na mídia nacional e internacional, a propagação dessa crise tem duas funções: a) circulação de capital em ensino, pesquisa e extensão; b) desfocar a crítica no aspecto que gera todas as crises: a contradição da mercadoria (a crise das crises). Do mesmo modo que o capital gera a crise econômica/financeira, gera diversas outras, tais como aquelas culturais, estéticas, ambiental, etc.

A “crise” ambiental merece alguns comentários como exemplo atual dessa manipulação. Além de suportar os pontos acima, os administradores geram “notícias” para um mundo da contemplação. A crise ambiental oferece mais “gás” à lógica da produção ao repetir a famosa cadeia dos “3 R’s” (reduzir, reutilizar e reciclar) cuja proposta está prioritariamente ligada ao consumo da mercadoria (gerando um consumo “consciente” e “exigente”, e paremos por aí) e não ao ambiente em si.

Porém, o que temos é um Nobel da Paz para Al Gore e muitas questões duvidosas. Não vou estender esse assunto, mas assim como existe a relação capital-trabalho, existem as teses do aquecimento global em contrapondo as do esfriamento global.

Provavelmente, os leitores deste texto viram Uma verdade inconveniente. Em oposição a ele, porém menos visto e difundido, há um documentário chamado A grande farsa do aquecimento global (BBC) no qual cientistas dão pareceres contra a tese do aquecimento e revelam quais os interesses econômicos e políticos em tal tese e com menos sentimentalismo. O leitor deste texto ou espectador do documentário deverá pensar sobre tal anti-tese e ver a luta entre duas vertentes de uma mesma categoria: aquela da visão científica. Podemos notar que tais discussões se restringem apenas ao seu meio, separado do dia-a-dia das pessoas, a não ser que o pacote tenha relação com o consumo que deve, imperativamente, ser no novo modelo que se está tentando implementar: reduza! reutilize! recicle!

A questão não é o maniqueísmo de quem está certo ou errado, mas lembrar o que foi dito acima sobre a produção e reprodução de diversas versões de coisas, idéias, pessoas, etc., para que possamos consumi-las.

Se eles administram o que chamam de crise ambiental e financeira, o que temos a ver com isso? As medidas necessárias para modificar as subcrises do capital(1) são implementadas para a classe trabalhadora (assalariada, precarizada ou desempregada) que não participa das instâncias de discussão (apenas são informadas das decisões), ou seja, há uma cisão das discussões em relação ao cotidiano.

Desse modo, é possível dizer, com Guy Debord, que tudo se tornou mercadoria(2) e a mídia mundial tem potencial de propagandear até consumirmos qualquer produto por diversos preços, utilizando a sua falsa linguagem. Vejamos, por exemplo, a mercadoria Barack Obama que o mundo consumiu e elegeu antes mesmo dos norte-americanos, forçando estes a irem às urnas para não saírem da vanguarda mundial que ilude todo o mundo em seu caráter separado da realidade cotidiana em que a representação não alcança as demandas reais da vida humana atualmente mercantilizada.

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(1) É preciso lembrar que essas subcrises a serem geridas mascaram a contradição: quanto mais se consome, e se organiza esse consumo, mais se gera consumo. Devemos lembrar que consumo pressupõe mercadoria que pressupõe trabalho feito por uma classe.
(2) Na medida em que as relações entre pessoas são mediadas por ela em um grau tal que se tornam imagens.

terça-feira, julho 07, 2009

PARA SE FALAR DE MICHAEL JACKSON ou A MORTE DE MOONWALKER

(Para o jornal O Cometa, Belo Horizonte, julho/2009)

PABLO GOBIRA
pablogobira@cafecombytes.com

Com Walter Benjamin (em suas “Teses sobre o conceito de história”, 1940) aprendemos que até o evento mais entranhado nas malhas da lógica dominante pode conter elementos de subversão e possibilidades de leituras diversas. A escolha de um caminho de reflexão não-linear, que se dá a partir de um elemento encadeador, é exemplar dessa prática. Essa ação crítica é necessária em um mundo no qual tudo é correnteza de informações e poucos peixes estão em piracema. Aqui se ensaiará brevemente uma possibilidade de leitura inspirada nessas idéias.

Perguntamos: o motivo para falar de Michael Jackson é sua morte? Sem um fato espetacular não há motivos? Não há necessidade de respostas para essas perguntas objetivas. Porém, deixo-as jogadas ao ar. Desse modo, usemos Michael para ressaltar uma de suas qualidades mais importantes nesse momento: mostrar que apenas o aparente e o novo nos atraem. Com o aparente e o novo vamos constituir um corpo crítico a partir de um dos movimentos de dança que ele popularizou: o famoso moonwalk.

Por qual outro motivo estamos TODOS curtindo, como uma irmandade universal, o eterno Michael Jackson? Sua morte é cultuada por uma humanidade necrófila nas telas e nos jornais: o culto de um fenômeno humano que já estava se apagando por sua efemeridade.

O seu apagamento não significa a afirmação de que não existirá sobrevida para Michael Jackson, mas sinaliza a ausência física de seu corpo sobre a superfície terrestre. Essa ausência física é suplantada pela presença de uma “aparência” provocada através de cicatrizes como o moonwalk. Afirma-se que o back-slide popularizado por Michael foi inventado pelo dançarino Bill Bailey. Esse passo teria aparecido em 1955 (vejam no curto vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=2VbPd2iu4bg) e, logicamente, não é executado como o faz o cantor pop recém falecido. A criação do passo e sua datação não é nosso grande problema. Cada performer é um autor e a execução de uma obra é única e carrega, assim, traços autorais.

Então, qual o motivo de eleger esse passo para esta leitura? Respondo que o passo de dança pode revelar alguns sinais que retiram Michael de um abismo midiático (e sua correnteza) e o insere em um fenômeno que representa características da contemporaneidade. Essas características põem em cheque a sociedade revelando algumas de suas angústias ou simplesmente a expõe.

O que seria esse passo então? Oficialmente o moonwalk foi executado em 1983 e ficou mundialmente conhecido nas performances da canção Billie Jean. Mesmo esse sendo o passo de dança mais famoso de Michael, comum a quase todos nós que estamos sendo bombardeados na tevê e jornais com fotos e trechos de vídeos em que o dançarino o executa, cabe descrevê-lo como vemos em diversos espaços da internet: “deve-se apoiar a ponta do pé direito contra o chão, mantendo o pé esquerdo em repouso, arraste o pé esquerdo alguns centímetros para trás e realiza-se o mesmo movimento invertendo os pés”.

Como elemento encadeador de reflexões dentre as produções de Michael Jackson, podemos pensar a idéia de se “andar na lua” como algo lento, escorregadio, um desafio a gravidade, como é visível para quem assiste ao bailarino. Porém, o que seria o “andar para trás” do back-slide? A essa pergunta juntam-se outras várias que retratam uma das expressões estéticas, assim como sua propagação, que se tornou marca desse cantor pop.

A performance é caracterizada pela efemeridade, ou seja, é passageira e nunca será igual a próxima execução assim como não é igual a anterior. Esse ato, além de situar a execução do passo de dança no tempo, também o retira dele na medida em que o moonwalk é lento e simula no executor outra temporalidade, como experimenta quem o assiste.

Apesar desses elementos que o tornam complexo e, às vezes, inverossímil, a execução do moonwalk provocou uma generalização de sua imitação, o que se deve à cultura que valoriza e propaga as encenações de um popstar. Poderíamos passar linhas e linhas especulando quais os motivos que o fazem ser adorado por crianças e adultos, mas a repetição de reflexões que apenas apontam possibilidades dessa recepção não nos levará a lugar algum.

É possível dizer que as representações do moonwalk e a sua imitação assinalam a proximidade entre o mundo contemporâneo e o que a dança representa. O passo é referência comum a muitas pessoas, seu efeito temporal desloca o executor daquele tempo progressivo, real, que é compartilhado por todos (executor e espectador) como um tempo que não tem pausa, cada vez mais rápido em um mundo em que “ninguém tem tempo pra nada”. A efemeridade da performance permite que as pessoas arrisquem subjetivamente sua execução. Cada vez que ele é feito se torna singular, único, o que se repete tornando-se mais especial com cada pessoa que o executa, aproximando-se ou não do propagador inicial, Michael Jackson, que já é uma segunda referência do back-slide, eliminando uma suposta originalidade a qual não se apega mais.

As possibilidades de execução e reprodução de um passo de dança nesse contexto da performance deve ser demarcado por ser elemento novo no mundo contemporâneo. É claro que danças coletivas, mimetização de celebridades, etc., não são novidade, como vemos a partir de Beatles, de Elvis, e outros. Porém, o moonwalk impressiona como um ato performático, enquanto um passo de dança que carrega sinais tão ligados ao contemporâneo e que o paralisam temporalmente. Sua existência mostra a incorporação da multiplicidade como elemento interno à própria lógica da indústria fonográfica que se emaranha enquanto pop nas artes performáticas.

Se Giorgio Agamben (Profanações, Editora Boitempo, 2007) está certo ao dizer que o autor é revelado subjetivamente pelo gesto, com o moonwalk de Michael Jackson revela-se não apenas o moonwalker, mas moonwalkers que mimetizam o bailarino indefinidamente. Pauta-se pela possibilidade de todos poderem criar e recriar o ato autoral. Todos se apropriam dos meios para criar e reproduzir, inclusive corporalmente, o executor-propagador. Constituiu-se na sociedade do mercado um jogo de espelhos permanente enquanto o primeiro executor do moonwalk, ou seja, seu autor/performer esteve vivo.

Como não poderia deixar de ser, uma vez que este texto se fez todo de questionamentos, terminamos com algumas questões: até que ponto estamos imitando Michael Jackson? Estamos realmente repetindo-o? Ou até que ponto criamos coletivamente uma pluralidade de criações que possuem potencial crítico e que representam uma época? Com a morte de Michael há chances para o efêmero e provisório gesto sobreviver?

Na lápide de mais um autor deixo aos leitores essas dúvidas.