quinta-feira, outubro 15, 2009

A COMUNA LACANDONA: em busca de uma linguagem comum ou uma crítica acadêmica para um autor não-canônico

PABLO GOBIRA
(Texto publicado no jornal O COMETA, em agosto de 2009)

"A comédia da arte fornecia aos atores canevas, ou seja, instruções para que eles construam situações onde um gesto humano subtraído das potências do mito e do destino pudesse enfim se tornar possível. Não se compreende nada da máscara cômica enquanto a compreendemos como um personagem diminuído e indeterminado. Arlequim ou o doutor não são personagens no sentido que Hamlet ou Édipo podem ser: as máscaras não são personagens, mas gestos representados segundo um tipo, uma constelação de gestos. Na situação em ato, a destruição da identidade do papel faz par com a destruição da identidade do ator. É a relação mesma entre o texto e a sua execução, entre a potência e o ato que é colocada aqui em causa."
Giorgio Agamben nas suas “Glosas Marginais aos ‘Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo’”, 1990


O escritor Silvio Colibra, como todos sabem, é o mais conhecido brasileiro hoje. Sua fama no exterior é maior do que a de Paulo Coelho, mas não tão premiado. Muitos perguntariam o motivo desse não reconhecimento da crítica, enquanto o público já o recebe há, aproximadamente, trinta anos através de suas linhas. Talvez pelo caráter inovador de sua escrita rascunhada. Talvez ele não seja mais lido por apoiar lutas que a mídia não consegue recuperar para a lógica capitalista. Possivelmente por atuar de modo crítico, assim como Noam Chomsky e Giorgio Agamben. Claro, todos esses são argumentos inerentes a sua própria obra, conservando as características de “obra de arte” enquanto tal, mas de modo irônico e ex-cêntrico.
Vejamos, por exemplo, este trecho de um de seus textos:

Marcos é surpreendido ao escutar seu nome enquanto colocava uma dose de whiskey em seu copo de vidro. A televisão, agora já tarde, anunciava mais uma façanha do EZLN, responsável pela ocupação de Chiapas, configurando um evento para se transmitir via cabo. O conteúdo da notícia não era muito verossímil, por isso nosso personagem se interessou. A notícia nomeava Marcos como comandante dos terroristas de Chiapas, no México. Claro, era outro Marcos: o “sup”. E a notícia relatava a morte de camponeses, vítimas do conflito entre os terroristas e o exército mexicano. (COLIBRA, 2007, p.37)

Nesse romance, intitulado Comuna Lacandona, de 2007, temos a história de um personagem não tão profundo – Marcos – que é acompanhado em sua rotina diária enquanto assalariado de uma companhia locadora de carros com filiais em diversos países. Ele torna-se, no decorrer do romance, um dos diretores da companhia. Sua rotina, representante da correria cotidiana dos indivíduos no capitalismo contemporâneo, engloba: viagens, deslocamentos entre casa, hotel e trabalho. Este último, muito mais fundamentado nas reuniões, especulações e acordos mais efêmeros até mesmo que o capital aberto da empresa que ele representa. O livro conta a sua história, uma narrativa de sua vida cotidiana enfadonha, tediosa.
Marcos se interessava pelas notícias referentes ao que ele chamava de “radicais sociais”. Quase como uma obsessão, se interessava pelas notícias televisionadas ou impressas em jornais, assim como as que apareciam na internet. Esse interesse “surrealístico” do personagem é explorado por Colibra no intuito de revelar uma transição contemporânea no mundo capitalista. Essa mudança está ligada ao caráter de assalariamento que, acompanhado do desemprego em fluxos e refluxos, domina a lógica do mundo atual. Nessa leitura desse personagem, podemos pensar se não há uma ligação entre “O banqueiro anarquista” de Fernando Pessoa e o Marcos de Colibra. Ambos os personagens se situam em uma posição de conflito, da luta de classes, na qual são levados a “relativizar” sua posição. Porém, no caso de Marcos essa relativização não depende dele, assim como ele também não assume o lado do seu inimigo. Marcos nunca encontrará o subcomandante que possui o seu nome, nunca se colocará de fato do outro lado da luta de classes no livro de Silvio Colibra.
Ao pesquisar na internet informações sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o personagem encontra a Sexta Declaração da Selva Lacandona. A parte que mais lhe agrada, segundo o narrador de Colibra, é esta:

“Nós somos os zapatistas do EZLN, ainda que também nos chamam ‘neo zapatistas’. Bom, pois nós, os zapatistas do EZLN, nos levantamos em armas em janeiro de 1994 porque vimos que já chega de tantas maldades que fazem os poderosos, que só nos humilham, roubam-nos, encarceram-nos e nos matam, e nada que ninguém diga resulta em algo. Por isso nós dissemos que ‘Já Basta!’, ou seja, que já não vamos permitir que nos façam menos e nos tratem pior do que como animais. E então, também dissemos que queremos a democracia, a liberdade e a justiça para todos os mexicanos, ainda que nos concentramos bem mais nos povos índios. Porque nós do EZLN somos quase puros indígenas daqui de Chiapas, mas não queremos lutar só pelo nosso bem ou só pelo bem dos indígenas de Chiapas, ou só pelos povos índios do México, mas queremos lutar junto com os que são gente humilde e simples como nós e que têm grande necessidade e que sofrem exploração e roubos dos ricos e seus maus governos aqui no nosso México e em outros países do mundo.” (COLIBRA, 2007, p.54)

Não é de se estranhar que seja esse trecho o mais interessante para Marcos. Esse personagem de Colibra – que tem apenas o primeiro nome como se o autor quisesse que não descobríssemos a real identidade de seu personagem por ele poder ser inspirado em alguém real – não possui enraizamento na realidade descrita pelo narrador. Ele é esvaziado não como uma estratégia artística, um artifício, mas por seu lugar estar representando uma “progressão” ou “continuidade” de uma classe (a burguesa) que se desmaterializa na medida em que se mimetiza (se proletariza) com toda a humanidade.
Essa desmaterialização é ilusória, uma vez que sabemos que a relação entre capital e trabalho está mais forte do que nunca, mesmo que mais “mágica”, mais “fantasmagórica”, mais distante do entendimento comum, da obviedade. Segundo Francisco Teixeira, todos – mesmo os desempregados – trabalham hoje sem contracheque. Esse fenômeno é descrito no livro Marx no século XXI, recém lançado (2008), e escrito com Celso Frederico.
Ao irmos ao banco fazer os “serviços” que eram de um trabalhador pertencente aos quadros dos bancos, estamos ainda realizando trabalho, só que agora nem sequer recebemos por ele. Muitas vezes ainda pagamos por esse serviço na medida em que utilizamos outros meios para fazê-lo como, por exemplo, quando retiramos extrato de nossa conta pela internet a qual está sendo paga todo mês religiosamente.
O personagem de Colibra parece querer descobrir seu lugar ao mesmo tempo em que consome o produto “EZLN” comercializado pela mídia. A estranheza que ele sente por ver que o EZLN é diferente do que o noticiário mostra não o faz se revoltar, mas refletir. Essa reflexão, que é separada de uma indignação concreta, surge como um processo de aceitação da ficcionalização provocada pelos meios de comunicação aos quais ele tem acesso. Ele acha comum, normal, banalizado. A linguagem do mundo é aquela da ficcionalização do fato, a separação de todos do que realmente existe e acontece.
Essa sua reflexão chega a tal ponto que ele passa a questionar se a declaração que ele leu não teria também sido modificada em sua tradução ou pelos ativistas que se dizem apoiadores do EZLN. Chega-se ao ponto de acreditar em possibilidades que vão além da importância do que é dito. O que não foi dito ou o que foi modificado é mais importante do que as críticas práticas e diretas que o documento apresenta. O personagem, aos poucos, ao invés de se perder e entrar em uma crise de seu lugar na luta de classes, passa a se interessar pelas notícias e suas pesquisas enquanto uma colagem de nova narrativa que ele será o primeiro a ter acesso e, talvez, pode até mesmo ser o único a conhecê-la, mesmo que consiga tempo em sua agenda para lançá-la na internet. Um sujeito com condições medianas constitui um processo de composição.
(Continua...)

quarta-feira, outubro 07, 2009

ESPAÇOS DA MEMÓRIA ou A MEMÓRIA FOI PARA O ESPAÇO: UMA LEITURA DA ITABIRA/MG DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

DE:
Pablo Gobira
Josué Borges
(Texto publicado no jornal O COMETA em setembro de 2009)


Com o objetivo de conhecer a cidade de Carlos Drummond de Andrade fomos visitar Itabira a convite de Waldir Barcelos e ciceroneados por Marcelo Procópio. À medida que íamos andando pela cidade e conhecendo os estabelecimentos, o editor do Cometa insistia em nos apresentar aos itabiranos como “aqueles que desconstruiriam Drummond” ou “aqueles que destroem os poetas”. Ao final da visita acabamos vendo – ele e nós – que isso, mesmo que fosse o objetivo mais concreto (e nada discreto) de nossa visita, seria desnecessário.
A destruição de Drummond é desnecessária devido ao seu lugar relegado muito mais aos espaços de um cânone formado pelas legitimações institucionais e/ou pelo poder público em suas intenções que deturpam mais que preservam os feitos do poeta itabirano. Na academia todos sabemos o quanto o poeta é conhecido. Nas escolas, sobretudo nas séries do ensino médio, o poeta é rememorado nos livros. Porém, qual é a função do poeta no contexto contemporâneo? O que é ser poeta? O que é ser esse poeta Drummond do qual os brasileiros tanto ouvem falar?
Claro que essas perguntas são mais lançadas aos leitores do que caberá a nós responder. Há nas perguntas feitas acima uma possível relação a ser traçada com o que há em Itabira: esse movimento de institucionalização de uma memória individual a partir dos espaços.
Sabemos que a modernidade, ao mesmo tempo em que possui um impulso desconstrutor da tradição, também constitui espaços que preservam o tradicional ou seus outros monumentos e documentos. Os museus e arquivos são erigidos como templos da institucionalização de saberes e vidas, centralizando, no caso da literatura, em alguns autores que por diversos motivos (isso mesmo: motivos) tornam-se o que chamamos: parte do cânone.
Itabira torna-se um museu a céu aberto. Um museu muito associado à figura de Drummond. Diversos são os espaços que propõem abrigar sua memória. Ao mesmo tempo em que se propõe preservar, a cidade é colada no que foi o Cauê.
Mesmo que o espaço-memória fosse um lugar fragmentado, fragmentário e lacunar, as lacunas itabiranas, criadas em relação ao poeta Drummond e seu pensamento, são crateras de dimensões proporcionais ao buraco do Cauê. A exemplo disso, o Memorial Carlos Drummond de Andrade – onde ouvimos um cidadão comum nos dizer: “O Cometa já tá fazendo 30 anos? Rapaz, Itabira num mudou nada, continua sendo uma capitania hereditária” – edificado junto ao Pico do Amor – um mirante de onde se pode avistar, dentre outras coisas, o Buraco do Cauê – com propósito de guardar os feitos e escritos importantes do Poeta de Ferro. O espaço não corresponde ao autor de seu projeto, o arquiteto Oscar Niemeyer, tampouco cumpre a função de memorial. Semelhante, mas opondo-se diametralmente ao poema “Retrato de família”, o espaço constitui-se mais em um álbum de fotografia deteriorado, a diferença cabal entre este e aquele descrito pelo poeta é que, no retrato pendurado na parede, Drummond recorre à memória para descrever fisionomias e atitudes dos personagens da imagem. No Memorial, o “turista” visitante não tem sequer linha e agulha para reconstruir os passos da fotografia drummondiana, ainda que com isso fizesse um patchwork. Antes, perde-se num emaranhado de imagens e descaminhos opacos e incompreensíveis que pairam como um clima de omissão.
Outro passo interessante dos Caminhos é a Fazenda do Pontal, uma réplica da Fazenda Doze Vinténs ou Fazenda dos Doze, que pertencia ao pai de Drummond e que deu origem, diz a crítica, ao poema “Infância” – poema cujos primeiros versos servem hoje de mote para festas de peão. A réplica aconteceu, a recriação do ambiente da infância drummondiana não. No lugar dos campos onde o pai campeava, hoje, do imenso espaço vazio dentro da casa, a vista que se tem é uma formosa lagoa de rejeitos da mineração. Ao fim e ao cabo, o passeio pode concluir-se com a visita ao Centro Cultural Carlos Drummond de Andrade, defronte à Igreja Universal do Reino de Deus, e encontrar o poeta que tanto criticou a mineração, em uma cidade onde tudo Vale magistralmente, sentado em uma pedra de minério, chegando à conclusão de que em Itabira “tudo Vale à pena”.
A cidade teve seu momento de levantar o poeta às alturas. Os hotéis, a casa de Drummond, a fazenda dos avós de Drummond, o Centro Cultural, etc., jogam com essa idéia do poeta como ícone pop da cidade. A cidade procura criar uma indústria que movimenta a cultura ao redor da imagem do poeta. Existe até mesmo uma pesquisa em andamento sobre essa relação da mineração da Vale com o uso de Drummond como o novo principal motor da economia da cidade. Vamos aguardar as conclusões do pesquisador, doutorando em Administração na UFMG, Prof. Luiz Alex Saraiva.
“Yo no creo en poetas, pero que los hay, los hay”, seria uma possibilidade de afirmação reflexiva que nos incita a entender a – mais do que acreditar nela - existência de seres separados das pessoas “normais” que podem se expressar de forma diferente destas no contexto contemporâneo. Os poetas seriam seres mágicos que alcançam um status diferente dos outros seres. Seriam os “capazes” de constituir “outra coisa” que não o “texto comum”. Seriam os criadores da linguagem impossível que pode ser compreendida sem ter compreensão. Seriam os que fazem a alienação em movimento de aproximação do texto com o leitor. Construtores do oximoro.
Podemos ensaiar que a decadência do poeta Carlos Drummond de Andrade que vimos em Itabira – no abandono dos espaços com o não envolvimento dos cidadãos da cidade neles – é sinal de um movimento que há contemporaneamente em se entender os artistas como pertencentes apenas a lugares específicos (nos meios especializados; nos meios intelectuais; nos centros culturais; nos usos políticos específicos; etc.), separados do restante da população. Por mais que o poder público tente incluir o poeta como ícone da cidade (incentivando os hotéis a fazê-lo, colocando estátuas e homenagens nas ruas, criando eventos como feiras da produção com frases do Drummond nas placas, etc.), o artista (e sua imagem celebrada) se torna separada e distante do cotidiano das pessoas. Desse modo, cada coisa fica em seu lugar.
Essa decadência é sinal de frustração. Essa frustração não deve ser vista como pessimista, mas como negativa. Um poeta com os versos de Drummond sendo negado no cotidiano é sintomático. Um poeta que canta o cotidiano não ser escutado mais a não ser nos ecos de seu nome é algo estranho que aliena (de outro modo) o escrito. Até mesmo as condições precárias de manutenção a que a memória do célebre está relegada é uma prova de que a frustração pede passagem em busca de uma mudança de recepção dessa produção: de passiva para resistente.
Por fim, este texto segue a tradição Drummondiana sobre a qual versa a história de existir uma pedra no meio do caminho. Em Itabira essa pedra está quase destruída. Ufa! Da destruição espera-se que nasça algo em contraponto. E agora, no meio dessa balbúrdia, o que nos resta? Resta-nos criar mais um espaço cultural: o Centro Cultural Buraco do Cauê (CCBC ou CeCuBuCá, o que fica quase uma linguagem do macaco - guinlagem camaco - como foi-nos ensinado pelos nativos e/ou não). No fundo, encontramos o pico destruído e o poeta em decadência sentado em uma pedra. A nossa proposta é de outra coisa surgir em meio aos escombros. O que será? Não sabemos. Queremos discutir na praça pública como fizemos quando passamos por Itabira, com os vigias, seguranças e outras pessoas. A cidade de Drummond vale muito a pena ser conhecida.