quarta-feira, dezembro 06, 2006

Um Seminário pela Igualdade*

No dia 20 de novembro de 2006 é comemorado o dia nacional da Consciência Negra. Esse dia rememora a luta e resistência em Palmares através da figura de Zumbi. A luta travada pelo movimento negro, assim como outros setores da sociedade civil em favor da igualdade de direitos, colocou esse dia no calendário nacional.
É nesse sentido que no dia 22 de setembro de 2006, das 18:30 horas às 21:30 realizou-se no Espaço Marista Estação Cidadania (Rua Padre Marinho, 455 (Pilotis), Santa Efigênia), organizado pelo Centro Marista de Educação e Cidadania (CEMEC), o I Seminário Marista sobre Igualdade Racial (I SEMIR). O evento tinha em vista não apenas a situação de desigualdade social e racial existente no Brasil desde a sua Fundação (ver: A Fundação do Brasil - testemunhos 1500-1700, de Darcy Ribeiro e Carlos de Araujo Moreira Neto, Petrópolis, Editora Vozes, 1993), mas também as contemporâneas manifestações dentro do espaço político nacional em que a deputada Nice Lobão e o senador Paulo Paim propõem projetos de lei que instituem cotas sociais e raciais (PL 73/1999), assim como o Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) respectivamente.
Junto a essas iniciativas agrega-se a recente polêmica do lançamento de dois manifestos, um a favor e outro contrário à Lei de Cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial, ambos assinados por iminentes intelectuais do país presentes em diversos setores culturais.
Com esse histórico em mãos, decidiu-se reunir em Belo Horizonte diversos públicos, como os colaboradores e técnicos da Instituição Marista, estudantes e professores de pré-vestibulares comunitários da Região Metropolitana de Belo Horizonte (MSU, Educafro e Rede de Pré-Vestibulares Comunitários Marista), assim como instituições diversas, ONG’s, sociedade civil e comunidade em geral para assistir e interagir no debate com uma mesa formada por profissionais ligados à Educação e, de algum modo, enraizados na cultura e periferia da Região Metropolitana de Belo Horizonte, assim como em Instituições de Ensino Superior da capital mineira.
Cada debatedor teve trinta minutos para expor seu ponto de vista acerca da questão da Igualdade Racial, assim como a questão das Cotas Raciais havendo réplicas dos componentes da mesa e, posteriormente, a palavra foi cedida para manifestações do público presente. O debate não se propunha como arena de embate para a vitória de um dos lados, mas todos compreenderam que o importante é trazer à tona a discussão em todos os âmbitos da sociedade, como forma de combater qualquer discriminação que prejudique o ser humano e atrapalhe o seu desenvolvimento social, econômico, e emocional. Por esse motivo, desde o princípio, o Centro Marista de Educação e Cidadania se propôs a realizar não apenas um (o primeiro), mas uma série de Seminários sobre a Igualdade Racial como forma de contribuir para esse necessário debate.
Nestas páginas do Cometa, o leitor poderá encontrar duas opiniões dos debatedores presentes no SEMIR, uma a favor e outra contra o Estatuto da Igualdade Racial e as Cotas Raciais.
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Ações Afirmativas no contexto das relações raciais no Brasil
Luiz Carlos Felizardo Junior[1]

O pertencimento racial tem importância significativa na estruturação da pobreza e das desigualdades sócio, econômicas e culturais no Brasil. O Racismo à Brasileira decorre, entre outros motivos, de um modelo capitalista fundado sobre bases escravagistas, que promoveu, e (segue alimentando), intensa desigualdade sócio-econômica entre pessoas brancas e pardas e negras. Temos que reconhecer que essa demanda social existe.

Vemos em nossa realidade cotidiana e também a partir de estudos diversificados (pesquisas acadêmicas, estudos governamentais e de instituições como a ONU, UNICEF, entre outros organismos internacionais) a veracidade da denúncia do movimento negro de que a integração da população negra e seus descendentes na sociedade brasileira, se fez através de políticas de estado e legislação de orientações explicitamente raciais[2], processo que levou esse segmento populacional a ocupar um lugar subalterno na organização sócio-econômica e cultural do Brasil.
A III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Xenofobia e as Intolerâncias Correlatas, realizada no ano de 2000 em Durban – África do Sul -, demonstrou a importância de se discutir, debater e propor ações contra o racismo e a discriminação racial no Brasil. Se, na época, a proposição contemplava um debate quase exclusivo do Movimento Negro, a partir da conferência, da qual o Brasil tornou-se signatário, deu-se a ampliação da discussão para o conjunto da sociedade brasileira e da comunidade internacional. Desde então, construir e buscar alternativas que apontem para a eliminação de toda e qualquer forma de racismo e discriminação é uma tarefa para os militantes do movimento negro, entidades, governos daqueles que compreendem que reconhecer o racismo e suas nefastas conseqüências e não buscar sua eliminação é o mesmo que continuar a praticá-lo por omissão.
Seguimentos comprometidos com a superação das injustiças instauram um debate social sobre a importância da formulação e implementação de políticas publicas específicas voltadas para eliminar e/ou reduzir as desigualdades raciais existentes na sociedade. Foram propostas ações no sentido de promover acesso à educação de qualidade, o preparo para o mercado de trabalho e o respeito aos direitos humanos e sociais especificamente focadas na população negra e seus descendentes. Tal focalização, também chamada de políticas de Ação Afirmativa, se justifica na medida em que se constatou o limite das políticas universalistas que, por atenderem a todos, acabam por não contribuir diretamente para a superação das desigualdades que separam brancos e negros, mantendo os últimos com os mais baixos níveis dentre todos os indicadores sócio-econômicos e culturais.
As assim chamadas políticas de ação afirmativa vêm sendo largamente discutidas, gerando posições que vão desde a plena aceitação – pautada pelo reconhecimento de sua legitimidade – até a total negação que se funda, na maioria das vezes, em análises enviesadas da realidade brasileira, e do segmento social ao qual historicamente tem sido negadas iguais condições de vida e inserção social. Os afrodescendentes são apontados como um grupo que busca, através de sua afirmação, se beneficiar auferindo vantagens em relação aos brancos no que se refere ao acesso a bens materiais e simbólicos.
Embora muito oportunos e necessários, em muitos casos, tais debates são esvaziados de significados na medida em que a consideração da realidade e de suas implicações sobre os afrodescendentes cede lugar à resistência por vezes cega e surda daqueles que insistem em manter-se em posição contrária por entenderem (ou intuírem) que tais políticas terão por conseqüência a redução dos privilégios que sempre estiveram garantidos a uma parcela da população, com a devida ampliação destes – não mais como privilégio, mas como direito – para toda a população!
É hora de assumir, o Brasil é um pais racista. A tão propalada democracia racial brasileira não existe, mas pode e deve ser construída.A convivência tranqüila na integração das 3 raças não é uma verdade na realidade sócio-racial e econômica brasileira, pois as relações cotidianas estão marcadas por preconceitos e discriminações de todas as ordens. Portanto, também somos preconceituosos e discriminamos, em maior ou menor grau, por ação, mas principalmente por omissão.
A participação ativa na construção e implementação de uma agenda política conjunta, pautada pela emergência de se criar políticas públicas de inclusão da população negra é uma tarefa cotidiana de todos nós. Nesse contexto, sou favorável às cotas nas universidades públicas brasileiras, ao estatuto da igualdade racial, ao ensino de história da África e dos afros-descendentes em todos os níveis de educação, entre outras ações essenciais na construção de uma democracia racial onde cor da pele não signifique apenas diferença e não siga alimentando a iniqüidade sócio-econômica e cultural característica das relações raciais no Brasil.
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[1] Mestrado em Educação no Programa de inclusão Sociedade e Cultura, onde desenvolve uma pesquisa sobre a construção da identidade de jovens negros e negras no contexto das relações raciais no Brasil; tem atuado no Programa Conexões de Saberes na UFMG - programa de ação afirmativa voltada para a permanência bem sucedida de estudantes auto declarados negros e pardos de origem popular na instituição; atuou com consultoria e assessoria Educacional, com enfase na formação continuada de professores da educação básica, na elaboração e acompanhamento de projetos coletivos de trabalho em escolas da rede pública de Minas Gerais. Atualmente tem ministrado palestras em Universidades e participado de debates com Movimentos Sociais, Universitários, Organizações não-governamentais, pré-vestibulares comunitários, e comunidade de modo geral. Ativista Negro, tendo sido dirigente nacional da Coordenação Nacional de Entidades Negras - CONEN e ex-diretor da Fundação Centro de Referência da Cultura Negra.
[2] Leis e artigos de objetivo explicitamente e restritório para negros dificultou o acesso a terras, educação, saúde, saneamento, política, expressões culturais e religiosas. Para saber mais, ver leis de terras, crimes de vadiagem, história da educação dos escravos, proibições a escravos e ex-escravos, etc.
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O DEBATE DA (DES)IGUALDADE RACIAL NO CONTEXTO BRASILEIRO ATUAL
William Rosa Alves[1]



Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional o “Estatuto da Igualdade Racial”, cujo Substitutivo mais recente (n. 213, de 2003), se põe “para combater a discriminação racial e as desigualdades estruturais e de gênero que atingem os afro-brasileiros, incluindo a dimensão racial nas políticas públicas e outras ações desenvolvidas pelo Estado”.

A apresentação de tal proposta sugere que a cidadania brasileira está diante de momento de grave decisão. Vê-se no texto que há envolvimento das várias dimensões da vida, mas principalmente do Estado nos seus diversos setores, esferas e níveis, tal como revelam os nomes de seus títulos (sempre referidos aos “direitos”) e capítulos (com seus dispositivos operacionais, como “fundos” e “conselhos de promoção da igualdade racial”, entre outros). Em debate tão polêmico, apontamos inicialmente dois problemas no projeto de lei.

Primeiro, há no texto uma exclusividade da questão “racial” brasileira no âmbito da “afro-brasilidade”, o que de início já sugere que a complexa presença indígena no Brasil, por exemplo, estaria em outro campo sociopolítico: será o da etnia? Para quem reconhece ou ao menos suspeita que descende também de índios (mesmo com a negação dos modos de vida e da memória), pode-se pensar em traços comuns das existência-resistência negra e indígena no Brasil. Porém, parece vigorar um biombo ideológico como se a “indianidade” brasileira estivesse confinada nos territórios já delimitados nas dolorosas lutas e negociação com o Estado, muitos deles ainda por serem alcançados na letra e de fato. Na “afrobrasilidade”, só os quilombolas estariam assemelhados à “questão indígena”.

Segundo, a maior parte das falas de ativistas da afro-brasilidade recorre a estatísticas quanto à desigualdade no acesso e permanência à educação, saúde, habitação e outros aspectos da vida “moderna”. Também denunciam (e por vezes procuram analisar) a discriminação, o preconceito e a violência perpetrados por outrem, em especial o Estado no âmbito da presença de suas polícias e ausência dos benefícios citados. A tais argumentações falta uma geoistória da formação social brasileira que explique, por exemplo, que sua fundação e desenvolvimento instituiu uma forma específica (e profunda) de dominação por meio da tutela estatal sobre o outro.

Se reconhecemos que tal traço reproduz a desigualdade, é preciso refletir quanto às implicações de uma lei que confere ao Estado a definição dos termos das relações sociais, mesmo a partir da pretensa autonomia da “autoclassificação” e da “promoção da igualdade racial” (ambas são alguma conquista no vasto e denso problema “racial” no Brasil). Falta democratizar o debate quanto ao conceito de “raça”, inventado de forma profunda principalmente em formações sociais que, como a nossa, passaram pela escravatura. Se já aparecem explicações confiáveis do ponto de vista biológico do porquê não existirem “raças” entre os seres humanos, tampouco se deve desprezar que a força ideológica do racismo orienta muitas práticas presentes no Brasil.

Nossa proposta de abertura do debate parte do amplo fluxo realizado com a captura de gente negra em grande parte da África, condição para a instituição baseada no trabalho para o outro (alienado). A condição de superação da desigualdade (mesmo que por hora necessariamente adjetivada como “racial”) passa pelo diálogo com quem está subalternizado, mas que ainda representa positivamente a dominação, ao buscar as históricas formas de controle social por meio do Estado, e o mesmo empenho de “realização” do humano por meio do mercado. No Brasil, todo cuidado com a letra das leis é pouco.
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[1] Professor da UFMG, Estudante de Pós-Graduação em Geografia (Doutorado) da UFF, Comissão de Assuntos Urbanos e Meio Ambiente da Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB – Seção Local de Belo Horizonte, Comissão de Cultura do Comitê Mineiro do Fórum Social Mundial.
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* Artigo publicado originalmente no Jornal O Cometa em Setembro/2006

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