Copiei este texto de um indivíduo qualquer, amigo meu até hoje. Um desconhecido do público em geral. O texto foi rabiscado rapidamente por ele. Jorge contou que o escreveu em uma noite, mas já estava com as idéias na cabeça há alguns dias. As idéias nasceram de conversas com diversas pessoas que com ele gostavam de debater sobre filmes, indústrias, capitalismo e outros temas contemporâneos. Ele me disse que publicaria o texto ainda este ano, mas eu não quis esperar, por isso, o copiei para vocês.
Algumas partes foram retiradas diretamente do texto dele. As outras eu tentei completar com leituras e trechos de outros textos a ponto de esquecer quando a contribuição de um começa e a do outro termina. No fundo, o que fiz foi radicalizar conforme ele mesmo propõe. Uma pessoa que pensa assim não pode se zangar com esses recortes e colagens. A vida é feita de Control C e Control V, e vou tentando me convencer.
O autor propõe uma forma de ler a indústria cultural contemporânea. Esse “modo” acaba por caber não apenas à indústria cinematográfica, para a qual ele aponta sua crítica, mas para as artes como um todo. A proposta do texto é gerar discussão e novos textos que utilizem os principais apontamentos para elaboração de outras críticas, sempre práticas, sempre cotidianas, sempre relacionando as indústrias e, portanto, o capitalismo com a vida das pessoas e os modos de resistir a ele.
Jorge escreve...
***
Tenho como premissa o fim da arte (seguindo uma leitura pós-Walter Benjamin/pós-Guy Debord) na sociedade do século XX e princípio do século XXI. Os avanços da reprodutibilidade técnica formam o mundo do homem que perdeu a humanidade. Esses avanços, também, são a saída: a humanidade, então, não está perdida. Um paradoxo.
Penso o mundo da arte – que mesmo depois de morta continua existindo – como um grande cadáver. Hoje, nesse corpo, muito pouco se diferencia a análise técnica de, por exemplo, um cinema (chamado) de autor daquele (chamado) de massas vindo de Hollywood. A solidificação dessa idéia enquanto um mesmo corpo está presente na incorporação de ambos os objetos nas análises realizadas nas academias brasileiras. Todos os filmes são cinema de autor ou todos os filmes se tornaram cinema de massa?
Não perderei tempo na reflexão que aproxima ou distancia essa questão. Irei apenas iniciar uma discussão sobre o que se torna comum aos dois enquanto uma hiper assimilação que acontece contemporaneamente. Perguntas surgirão do leitor: como é possível dizer isso sem se conhecer todos os filmes já feitos? Como é possível generalizar dessa forma?
Por causa dessas perguntas, aqui se propõe não apenas uma, mas uma série de análises que não esgotarão o tema, mas que incorporarão vários elementos na medida do possível. Considerando o princípio da arte morta na sociedade capitalista contemporânea, e a reprodutibilidade técnica em ascensão quantitativa constante e mensurada desde a tese de Benjamin, irei pensar sobre alguns cadáveres em uma série de textos ou de passagens.
Com isso em mente, enquanto os vermes comem a carne dos cadáveres, tentarei trazer o serial killer para as críticas que realizarei. Assim como o sujeito (um ladrão de vidas) dessa metáfora, não sei quando serei pego. Por esse motivo, também não poderei dizer quando irei parar essa série. Também não sei onde os publicarei.
Para compreender melhor a aproximação que se dá contemporaneamente entre as duas vertentes do cinema apontado – duas faces de uma mesma indústria – vejamos a idéia trazida por Pablo Gobira do “Processo Mediano de Composição”. Abaixo, tomo a liberdade de citar um longo trecho de sua concepção preliminar:
"PRELIMINARES: PROCESSO MEDIANO DE COMPOSIÇÃO
A arte, então, não existe. Existe mercadoria. Porém, se a arte existisse não seria arte, seria um processo mediano de composição.
Este não pretende ser um manifesto. Muito menos o seu inverso: a abstenção.
Não faço parte de uma vanguarda. O que aqui se propõe é falar do que se vê todos os dias nas ruas. Portanto, aqui não há nenhuma proposta. Nada coletivo... ainda.
Eu filmo com o celular, escrevo e repasso e-mails indesejados. Como muitos (e todos o podem), atribuo autorias de spams aos meus outros. E quem não o faz? Sei ler, sei versificar, sei narrar. Burlo descuidadamente autorias através dos domínios do copyright. Plágio é o que restou.
Algumas dúvidas: Tudo isso que faço seria arte? O que faz o que eu faço ser arte? O que os outros têm que ver com o que eu faço?
Apenas uma resposta: o que faz o que os outros fazem não ser arte é a existência da possibilidade de cooptação. Os responsáveis pela estatutização das produções – o mercado e suas variações tentaculares – criam a possibilidade daquilo que possui mais valor de troca que de uso tornar-se outra coisa ainda como último fôlego. Poder participar da dinâmica mercadológica das indústrias de cultura é o que faz o processo mediano de composição ser passível de ser assimilado. O interesse nesse processo é meramente mercadológico. Mas vemos que ele já existe, não precisando do mercado para isso.
Processo: por não ser finalizado, nem mesmo quando fixado por uma crítica ou quando vendido como produto. Sabe-se, assim, que quando cooptado/assimilado deixa de agir como processo em sua beleza cotidiana, reagindo contra ela e tornando-se passível de um nível de crítica indeterminado e de nova autoridade que não a daquele indivíduo.
Mediano: por ser possível para todos e todas devido aos novos meios de reprodução técnica, uma vez que todas e todos podem utilizar processos de criação artística antes distantes de suas mãos não mais inaptas.
Composição: por ser envolvente a ponto de considerar o indivíduo e sua habilidade de compor uma obra, produto, ou marca que será inicialmente arquivada junto às inúmeras memórias de sua vida enquanto sujeito realizado na sociedade capitalista.
Dessa forma, o seu processo pode ser analisado pela crítica, mas não será um processo mediano de composição por se desvincular de seu meio genético. Antes de ser arte, será uma pré-produção mercadológica que está lá para ser consumida com todo seu valor.
Pablo Gobira (Eu escrevi, mas qualquer um poderia ter escrito em 29/06/2008)"
Há algo que sinto falta nesse diagnóstico preliminar. Talvez por ser preliminar não contenha o diagnóstico também do caráter individualista que esses processos medianos contêm. Mesmo assim, partindo desse diagnóstico preliminar da arte contemporânea, podemos imaginar a relação entre a produção do autor – esse indivíduo com o celular na mão – e o cineasta apenas como imaginária. Porém, se nos remetemos a cineastas como Glauber Rocha que já pensava com “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”, temos essa apresentação acima não como diagnóstico da arte contemporânea, mas como constatação do que já foi dito há alguns bons quarenta anos. A verdade é que o acesso à reprodutibilidade técnica que hoje ocorre faz com que as pessoas possam se tornar verdadeiros “homens-banda”.
É também com a idéia de processo mediano de composição que citamos carnalmente os antepassados humanos, especialmente gregos e romanos, para os quais o artista e o artesão se aproximavam, sendo eles - quase - iguais, podendo-se pensar que a criatividade e a cópia não se distanciavam.
Inventividade, criatividade e força de vontade não são o bastante para estrelar nesse palco. O acesso às técnicas de reprodução, por exemplo, cria um cinema independente com maior circulação, mas que pode ser incorporado enquanto processo mediano de composição (mesmo que seus filmes estejam acabados, pois a idéia de processo não significa apenas “inacabamento” no sentido de realização cinematográfica ou outra qualquer, mas a potencialidade de incorporação enquanto mercadoria).
A metáfora do palco, assim como aquela da engrenagem da fábrica, não vale mais. A do espetáculo, mostrada em 1967 por Guy Debord ainda está dentro do prazo de validade. O capitalismo ainda não a assimilou – da forma que ela é de fato – enquanto potencial-produto. O que se conseguiu foi entortar a teoria crítica de Debord resumindo-a a metáfora do espetáculo (essa, como a do palco, já nasce morta, sai do prazo de validade por ter sido superada).
Com a metáfora de Debord – que apenas pode ser usada enquanto crítica prática ao capitalismo e não como diagnóstico dele – podemos dizer que conseguimos enxergar que não existem pessoas com câmeras na mão ou idéias na cabeça, mas pessoas que têm suas relações mediadas por mercadorias que, hoje, estão em seu mais alto grau: o imagético.
Nesse contexto, realmente importa à indústria cultural se temos separação entre uma alta cultura e “cinema de autor” ou baixa cultura e “cinema de massas”? O que importa é a sua capacidade de diversificação. Temos que ter mercado para os dois tipos de cinema, e temos que nos sofisticar a ponto da nossa mercadoria se hibridizar, podendo conter elementos para um e para outro nicho. Na sociedade do consumo, muitas vezes, aquele que está em um nicho pode se ver temporariamente em outro por algum motivo, tornando-se consumidor das mercadorias que, não possuindo valor de uso, são imagens que circulam livremente pelas cidades, salas de cinema e internet.
Tendo em vista a hibridização necessária para o capitalismo, o produto “arte” se configura como mercadoria quando ultrapassa o seu processo mediano de composição. Processo esse individual e também individualista, que apenas existe por que não alcançou o nível de circulação total da mercadoria enquanto imagem (por uma questão de tempo). Desse modo, ainda há a possibilidade de ser crítico ao mercado e a sua situação potencial (quando em recuperação) como mercadoria do futuro. Tudo é possível enquanto não é mercadoria, mas logo o é. Essa é a positividade que existe no processo mediano de composição que conduz o processo artístico à mercadoria.
O processo mediano de composição representa a democratização (no pior sentido da palavra) da reprodutibilidade técnica e da circulação, assim como a socialização das produções de diversos campos artísticos, tais como aquele que dividiu o cinema em de “autor” e de “massas”, apontando para sua aproximação e/ou unificação gradativa.
***
Resolvi parar aqui com a voz de Jorge para não confundir o leitor do modo que eu fiquei confuso. Proporei ao autor que ambos publiquemos algumas discussões acerca de filmes específicos ou técnicas que podemos apontar. Alguns exemplos podem ser citados: a quantitativa presença da câmera em movimento em filmes; a regressão na qualidade da filmagem; o hipertexto e outras fragmentações narrativas; o jogo entre a realidade e a ficção.
Havendo resistência de Jorge na não publicação, escreverei esses textos tentando reproduzir a sua escrita. Se tudo der errado, o leitor nada perderá, apenas lerá alguns aportes teórico-práticos a mais de um mundo de teorias sem práticas.
Ressalto que o leitor já ganhou com a prática que Jorge apontou: a possibilidade da negação em um ambiente capitalista (um ambiente da positividade). Um dos principais meios para realizar a negação é o acesso à Internet que, paradoxalmente, movimenta o mercado sob a forma monstruosa do espetáculo. Possivelmente, é a arma mais forte do espetáculo. Mesmo assim, essa arma – como todas as armas – conserva o potencial de “explodir a culatra” através da expropriação de seu uso, tal como ocorreu entre 1999 e 2001 em eventos chamados: Dias Internacionais de Luta Anti-Capitalistas, Dias de Ação Global Contra o Capitalismo ou ainda Carnavais Anti-Capitalistas. Todos convocados sem partidos, sindicatos ou demais órgãos vanguardistas. O meio de divulgação principal foi a Internet.
Esse potencial apontado está longe do otimismo de autores como Pierre Lévy que integram suas idéias à lógica do capitalismo. As idéias aqui expostas se unem a uma possibilidade concreta de utilizar a Internet enquanto um dos instrumentos inseridos nas metodologias de resistências cotidianas, humanas, que penetram em diversos espaços, interferindo na constituição e no surgimento de processos medianos de composição alcançando, quando bem sucedido, uma consciência de coletividade, de classe, de humanidade.
Porém, nada disso sei sozinho. Veremos se conseguimos continuar essa discussão daqui para frente em outros terrenos, em outros textos, em novas incursões.
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