segunda-feira, outubro 06, 2008

Maio de 1968 não foi culpa de herói

Foi culpa de CRIMINOSOS SOCIAIS: trabalhadores e estudantes. Desde quando Brecht (1898-1956) encenou em seus textos o declínio do herói (figura iminente da burguesia) até os dias de hoje, ainda não se compreendeu que ele reproduzia o germe da experiência da luta revolucionária. Lógico que, naquele momento, ele a produzia em função artística. Porém, isso é óbvio para os críticos. A novidade - ou o “não-novo” - que deve ser repetida é o apontamento que essa potencial crítica ao herói carrega: o interesse pela teoria prática, pela crítica prática, uma ação sem representação ou representantes.

Do mesmo modo que o maio de 1968 parisiense não foi feito de heróis e mártires, ele também não foi apenas parisiense, ou europeu, ou ocidental. Esses adjetivos/categorias fazem parte de um emaranhado de fios que ajudam a sustentar a metafórica existência do capitalismo insistente e, praticamente (é preciso dizer: na prática não-humana), perpétuo. Não se tratou de linhas de pensamentos, correntes filosóficas, vanguardas revolucionárias, mas sobretudo de um impulso revolucionário anticapitalista.

A propriedade do “ser anticapitalista” significou, naquele instante, um salto de tigre, como o disse Benjamin (1892-1940). Esse salto de tigre-homem elevou os trabalhadores e os estudantes a condição de seres humanos que tensionaram suas musculaturas para agarrar o tempo e enxergar claramente as ruínas deixadas pelo progresso capitalista que os levavam a algum lugar nenhum.

O salto de tigre retomou as experiências práticas (sim, vou ser pleonástico, pois a ocasião dos 40 anos de 1968 necessita da repetição de que foi mais prático que ideológico e/ou separado do cotidiano) de diversos momentos históricos da sociedade capitalista. E atrevo-me a apontar alguns: a Comuna de Paris que, em 1871, entrou à força para a história provando a possibilidade de uma organização não capitalista na prática, constituída pela teoria-prática; a resistência dos trabalhadores e camponeses que se organizaram em conselhos (que são os Sovietes, em Russo) na Revolução Comunista Russa que se tornou Revolução Bolchevique Russa, ao ser tomada das mãos dos trabalhadores pela vanguarda ou partido Bolchevique; a resistência de Kronstadt (1921) ao “exército vermelho” trotskista e leninista que os queriam integrados à Revolução Bolchevique ou então mortos; e, é claro, o maio de 1968 francês.

O que une todos esses momentos? Unem-se na escolha por uma prática que foi cotidiana. Os trabalhadores, camponeses e estudantes se organizaram nos locais de trabalho e estudo. Não optavam pela organização de partidos, de sindicatos, ou de outras vanguardas. Apontavam soluções práticas contrárias aos entes separados das pessoas que despersonalizam as necessidades humanas. Sua organização era horizontal e não hierárquica. A falta desse controle por parte das vanguardas as fez, no princípio, sabotarem as articulações e, posteriormente, usar todas as suas forças para penetrar o seio desse método revolucionário para agir nele contra-revolucionando-o.

Desse modo, pensando em maio de 1968, nele contendo uma metodologia cotidiana e não separada, podemos dizer que também foi contra-espetacular. Porém, como todo o cotidiano é consumido pela máquina capitalista, com a radicalidade do maio de 1968 não poderia ser diferente. Mas isso se pensarmos a radicalidade como seu fim e não como prática cotidiana. Desse modo, não vejo possibilidades da radicalidade não separada da vida cotidiana ser facilmente cooptada.

A prova dessa dificuldade é haver deturpação das conquistas reais de maio de 1968 resumindo-as em ocupações de escolas, fábricas, universidades, etc., sem pensar o caminho escolhido pelas pessoas. Assumiu-se o formato de conselhos de escolas, de universidades, de fábricas não hierárquicos, horizontais, por estarem em um cotidiano onde essa horizontalidade, antes, não se apresentava. Também se percebeu na prática que essa organização horizontalizada, não hierárquica não era o fim em si.

Hoje, a metodologia da ação é diferente daquela de maio de 1968, assim como do início da Revolução Soviética (aquela ainda não Bolchevique), e da Comuna de Paris. Temos a experiência de que a ação deve ser no nosso dia-a-dia (espaços do trabalho, do estudo, da vida). Deve e apenas pode ser no dia-a-dia, pois é somente nele que essa vida, mesmo que esteja mediada por mercadorias, já apresenta alguns “escapes” possíveis enquanto resquícios da humanidade. E não podemos fingir que não vemos as possibilidades, pois elas estão em cada sabotagem, em cada crítica prática à propriedade privada, etc.

Para os que querem fugir dos animais mais usados pelo velho mundo, posso citar-lhes outros do novo mundo, mas aviso que todos devem ser pensados igualmente. Os saltos dos outros lugares também são de tigres, ou mesmo de jaguaretê ou leopardo. Todos são saltos. Para simplificar vou me restringir aos exemplos do México e da Argentina.

O sul do México arde, controversamente, desde 1994 com a formação do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) e sua relação não-hierarquizada com o povo do Estado Mexicano de Chiapas. O EZLN se submete ao povo de cada vila ou cidade onde está presente e que se organiza em conselhos autônomos. Também é necessário citar o recente (pois aconteceu em 2006 e 2007) salto do povo da cidade de Oaxaca, no Estado Mexicano de Oaxaca, em que megamarchas tomaram as ruas com milhões de pessoas. Prédios públicos e privados foram ocupados, as pessoas passaram a se auto-organizar a partir de seus locais de trabalho e disso não saiu boa coisa: elas deixaram de serem mercadorias e viraram seres humanos por algum tempo que puderam enfim controlar.

Em 2001 a Argentina também ardeu. Diversas pessoas nas periferias de Buenos Aires se autogeriram contra todos: “Que se vayan TODOS” eles diziam. A esquerda oficial (partidos, sindicatos, etc.) junto com a mídia em geral traduziram o grito como: “que se vão todos que estão no governo e que outros políticos tomem seu lugar”. A periferia se reuniu em assembléias populares nas praças e nos parques, enquanto uma classe “média” se revoltou por ter seu dinheiro tomado nos bancos.

Meu esforço aqui não é o de comentar esses eventuais mil novecentos e sessenta e oitos que ocorrem cotidianamente ou ocorreram nessas citações acima, mas pretendi apontar que todos esses citados também CITAM, como o disse Benjamin, práticas revolucionárias anteriores a eles (como já disse: é necessário pleonasmos nessas ocasiões).

Pensando como Jorge Luis Borges (1899-1986), a Argentina teve seus precursores e eles foram mostrados aqui neste texto. Não desejo resumir as coisas, por isso é preciso dizer que cada evento citado possui elementos diferentes. Permanece uma teoria prática possível nesses momentos humanos.

É importante ressaltar que o contexto político daquele 2001 estava amparado por encontros ricos em humanidade ou de outra coisa que não o que temos comumente. Aqueles foram os chamados carnavais anticapitalistas que aconteceram fervorosamente sob o grito: pensar global, agir local. Seattle/1999 é mais um ponto na história de um século que revela todos esses elementos práticos de uma luta subversora das hierarquias do Estado e do Mercado.

É também necessário dizer que dentro de um fluxo de citações, existem interrupções que participam do refluxo prático do capitalismo. Muitas vezes - e após Seattle, muitas vezes mais - eles se trasvestirão de esforços de discussões que pretendem aproveitar as experiências da ordem do dia, tais como o foi com: o Fórum Social Mundial (e suas vertentes Brasileira, Mineira, etc.); os partidos e sindicatos e suas atuações vanguardistas (portanto: separadas) nos momentos citados acima, tal como desde maio de 1968; o financiamento realizado por determinadas empresas, como a Ford e outras tantas, das atividades que pretendem apontar “um outro mundo”.

A verdade é que estamos todos presos nesses emaranhados de fios que nos puxam para os mesmos lugares-comuns (e não para a realidade humana). Ao nos puxar tentam, inclusive, apropriar-se dos diversos discursos críticos de momentos como os maios de sessenta e oitos que ocorrem nas minúcias das relações mediadas por imagens (sabotagens, preguiças, críticas práticas em geral).

É necessária uma releitura das atuações e práticas sim, mas feitas no entendimento de que existe uma batalha pela sobrevivência cotidiana. Não imagino que sejam necessárias teorias e mais teorias que expliquem o funcionamento do mundo e de uma realidade que já foi desmascarada pela prática (se for preciso repetir eu repito: desmascarada pelas práticas já citadas). Também não acredito que seja necessária a criação de metodologias revolucionárias para a mudança do mundo, ou que devamos pensar “um outro mundo”, pois o mesmo já foi constituído nessas citações sem imposição de nenhuma ideologia.

Pudemos, a partir dessas experiências, ter o privilégio de escolher um lado que não é tão escolhido e é sempre criminalizado pelas esquerdas que se adentram na oficialidade do mundo capitalista: o lado a lado diário. É desse modo que a história de maio de 1968 - e outros tantos - não pode realmente ser feita de heróis, mas sim, de criminosos sociais.

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