PABLO GOBIRA
(Texto publicado no jornal O COMETA, em agosto de 2009)
"A comédia da arte fornecia aos atores canevas, ou seja, instruções para que eles construam situações onde um gesto humano subtraído das potências do mito e do destino pudesse enfim se tornar possível. Não se compreende nada da máscara cômica enquanto a compreendemos como um personagem diminuído e indeterminado. Arlequim ou o doutor não são personagens no sentido que Hamlet ou Édipo podem ser: as máscaras não são personagens, mas gestos representados segundo um tipo, uma constelação de gestos. Na situação em ato, a destruição da identidade do papel faz par com a destruição da identidade do ator. É a relação mesma entre o texto e a sua execução, entre a potência e o ato que é colocada aqui em causa."
Giorgio Agamben nas suas “Glosas Marginais aos ‘Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo’”, 1990
O escritor Silvio Colibra, como todos sabem, é o mais conhecido brasileiro hoje. Sua fama no exterior é maior do que a de Paulo Coelho, mas não tão premiado. Muitos perguntariam o motivo desse não reconhecimento da crítica, enquanto o público já o recebe há, aproximadamente, trinta anos através de suas linhas. Talvez pelo caráter inovador de sua escrita rascunhada. Talvez ele não seja mais lido por apoiar lutas que a mídia não consegue recuperar para a lógica capitalista. Possivelmente por atuar de modo crítico, assim como Noam Chomsky e Giorgio Agamben. Claro, todos esses são argumentos inerentes a sua própria obra, conservando as características de “obra de arte” enquanto tal, mas de modo irônico e ex-cêntrico.
Vejamos, por exemplo, este trecho de um de seus textos:
Marcos é surpreendido ao escutar seu nome enquanto colocava uma dose de whiskey em seu copo de vidro. A televisão, agora já tarde, anunciava mais uma façanha do EZLN, responsável pela ocupação de Chiapas, configurando um evento para se transmitir via cabo. O conteúdo da notícia não era muito verossímil, por isso nosso personagem se interessou. A notícia nomeava Marcos como comandante dos terroristas de Chiapas, no México. Claro, era outro Marcos: o “sup”. E a notícia relatava a morte de camponeses, vítimas do conflito entre os terroristas e o exército mexicano. (COLIBRA, 2007, p.37)
Nesse romance, intitulado Comuna Lacandona, de 2007, temos a história de um personagem não tão profundo – Marcos – que é acompanhado em sua rotina diária enquanto assalariado de uma companhia locadora de carros com filiais em diversos países. Ele torna-se, no decorrer do romance, um dos diretores da companhia. Sua rotina, representante da correria cotidiana dos indivíduos no capitalismo contemporâneo, engloba: viagens, deslocamentos entre casa, hotel e trabalho. Este último, muito mais fundamentado nas reuniões, especulações e acordos mais efêmeros até mesmo que o capital aberto da empresa que ele representa. O livro conta a sua história, uma narrativa de sua vida cotidiana enfadonha, tediosa.
Marcos se interessava pelas notícias referentes ao que ele chamava de “radicais sociais”. Quase como uma obsessão, se interessava pelas notícias televisionadas ou impressas em jornais, assim como as que apareciam na internet. Esse interesse “surrealístico” do personagem é explorado por Colibra no intuito de revelar uma transição contemporânea no mundo capitalista. Essa mudança está ligada ao caráter de assalariamento que, acompanhado do desemprego em fluxos e refluxos, domina a lógica do mundo atual. Nessa leitura desse personagem, podemos pensar se não há uma ligação entre “O banqueiro anarquista” de Fernando Pessoa e o Marcos de Colibra. Ambos os personagens se situam em uma posição de conflito, da luta de classes, na qual são levados a “relativizar” sua posição. Porém, no caso de Marcos essa relativização não depende dele, assim como ele também não assume o lado do seu inimigo. Marcos nunca encontrará o subcomandante que possui o seu nome, nunca se colocará de fato do outro lado da luta de classes no livro de Silvio Colibra.
Ao pesquisar na internet informações sobre o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), o personagem encontra a Sexta Declaração da Selva Lacandona. A parte que mais lhe agrada, segundo o narrador de Colibra, é esta:
“Nós somos os zapatistas do EZLN, ainda que também nos chamam ‘neo zapatistas’. Bom, pois nós, os zapatistas do EZLN, nos levantamos em armas em janeiro de 1994 porque vimos que já chega de tantas maldades que fazem os poderosos, que só nos humilham, roubam-nos, encarceram-nos e nos matam, e nada que ninguém diga resulta em algo. Por isso nós dissemos que ‘Já Basta!’, ou seja, que já não vamos permitir que nos façam menos e nos tratem pior do que como animais. E então, também dissemos que queremos a democracia, a liberdade e a justiça para todos os mexicanos, ainda que nos concentramos bem mais nos povos índios. Porque nós do EZLN somos quase puros indígenas daqui de Chiapas, mas não queremos lutar só pelo nosso bem ou só pelo bem dos indígenas de Chiapas, ou só pelos povos índios do México, mas queremos lutar junto com os que são gente humilde e simples como nós e que têm grande necessidade e que sofrem exploração e roubos dos ricos e seus maus governos aqui no nosso México e em outros países do mundo.” (COLIBRA, 2007, p.54)
Não é de se estranhar que seja esse trecho o mais interessante para Marcos. Esse personagem de Colibra – que tem apenas o primeiro nome como se o autor quisesse que não descobríssemos a real identidade de seu personagem por ele poder ser inspirado em alguém real – não possui enraizamento na realidade descrita pelo narrador. Ele é esvaziado não como uma estratégia artística, um artifício, mas por seu lugar estar representando uma “progressão” ou “continuidade” de uma classe (a burguesa) que se desmaterializa na medida em que se mimetiza (se proletariza) com toda a humanidade.
Essa desmaterialização é ilusória, uma vez que sabemos que a relação entre capital e trabalho está mais forte do que nunca, mesmo que mais “mágica”, mais “fantasmagórica”, mais distante do entendimento comum, da obviedade. Segundo Francisco Teixeira, todos – mesmo os desempregados – trabalham hoje sem contracheque. Esse fenômeno é descrito no livro Marx no século XXI, recém lançado (2008), e escrito com Celso Frederico.
Ao irmos ao banco fazer os “serviços” que eram de um trabalhador pertencente aos quadros dos bancos, estamos ainda realizando trabalho, só que agora nem sequer recebemos por ele. Muitas vezes ainda pagamos por esse serviço na medida em que utilizamos outros meios para fazê-lo como, por exemplo, quando retiramos extrato de nossa conta pela internet a qual está sendo paga todo mês religiosamente.
O personagem de Colibra parece querer descobrir seu lugar ao mesmo tempo em que consome o produto “EZLN” comercializado pela mídia. A estranheza que ele sente por ver que o EZLN é diferente do que o noticiário mostra não o faz se revoltar, mas refletir. Essa reflexão, que é separada de uma indignação concreta, surge como um processo de aceitação da ficcionalização provocada pelos meios de comunicação aos quais ele tem acesso. Ele acha comum, normal, banalizado. A linguagem do mundo é aquela da ficcionalização do fato, a separação de todos do que realmente existe e acontece.
Essa sua reflexão chega a tal ponto que ele passa a questionar se a declaração que ele leu não teria também sido modificada em sua tradução ou pelos ativistas que se dizem apoiadores do EZLN. Chega-se ao ponto de acreditar em possibilidades que vão além da importância do que é dito. O que não foi dito ou o que foi modificado é mais importante do que as críticas práticas e diretas que o documento apresenta. O personagem, aos poucos, ao invés de se perder e entrar em uma crise de seu lugar na luta de classes, passa a se interessar pelas notícias e suas pesquisas enquanto uma colagem de nova narrativa que ele será o primeiro a ter acesso e, talvez, pode até mesmo ser o único a conhecê-la, mesmo que consiga tempo em sua agenda para lançá-la na internet. Um sujeito com condições medianas constitui um processo de composição.
(Continua...)
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