DE:
Pablo Gobira
Josué Borges
(Texto publicado no jornal O COMETA em setembro de 2009)
Com o objetivo de conhecer a cidade de Carlos Drummond de Andrade fomos visitar Itabira a convite de Waldir Barcelos e ciceroneados por Marcelo Procópio. À medida que íamos andando pela cidade e conhecendo os estabelecimentos, o editor do Cometa insistia em nos apresentar aos itabiranos como “aqueles que desconstruiriam Drummond” ou “aqueles que destroem os poetas”. Ao final da visita acabamos vendo – ele e nós – que isso, mesmo que fosse o objetivo mais concreto (e nada discreto) de nossa visita, seria desnecessário.
A destruição de Drummond é desnecessária devido ao seu lugar relegado muito mais aos espaços de um cânone formado pelas legitimações institucionais e/ou pelo poder público em suas intenções que deturpam mais que preservam os feitos do poeta itabirano. Na academia todos sabemos o quanto o poeta é conhecido. Nas escolas, sobretudo nas séries do ensino médio, o poeta é rememorado nos livros. Porém, qual é a função do poeta no contexto contemporâneo? O que é ser poeta? O que é ser esse poeta Drummond do qual os brasileiros tanto ouvem falar?
Claro que essas perguntas são mais lançadas aos leitores do que caberá a nós responder. Há nas perguntas feitas acima uma possível relação a ser traçada com o que há em Itabira: esse movimento de institucionalização de uma memória individual a partir dos espaços.
Sabemos que a modernidade, ao mesmo tempo em que possui um impulso desconstrutor da tradição, também constitui espaços que preservam o tradicional ou seus outros monumentos e documentos. Os museus e arquivos são erigidos como templos da institucionalização de saberes e vidas, centralizando, no caso da literatura, em alguns autores que por diversos motivos (isso mesmo: motivos) tornam-se o que chamamos: parte do cânone.
Itabira torna-se um museu a céu aberto. Um museu muito associado à figura de Drummond. Diversos são os espaços que propõem abrigar sua memória. Ao mesmo tempo em que se propõe preservar, a cidade é colada no que foi o Cauê.
Mesmo que o espaço-memória fosse um lugar fragmentado, fragmentário e lacunar, as lacunas itabiranas, criadas em relação ao poeta Drummond e seu pensamento, são crateras de dimensões proporcionais ao buraco do Cauê. A exemplo disso, o Memorial Carlos Drummond de Andrade – onde ouvimos um cidadão comum nos dizer: “O Cometa já tá fazendo 30 anos? Rapaz, Itabira num mudou nada, continua sendo uma capitania hereditária” – edificado junto ao Pico do Amor – um mirante de onde se pode avistar, dentre outras coisas, o Buraco do Cauê – com propósito de guardar os feitos e escritos importantes do Poeta de Ferro. O espaço não corresponde ao autor de seu projeto, o arquiteto Oscar Niemeyer, tampouco cumpre a função de memorial. Semelhante, mas opondo-se diametralmente ao poema “Retrato de família”, o espaço constitui-se mais em um álbum de fotografia deteriorado, a diferença cabal entre este e aquele descrito pelo poeta é que, no retrato pendurado na parede, Drummond recorre à memória para descrever fisionomias e atitudes dos personagens da imagem. No Memorial, o “turista” visitante não tem sequer linha e agulha para reconstruir os passos da fotografia drummondiana, ainda que com isso fizesse um patchwork. Antes, perde-se num emaranhado de imagens e descaminhos opacos e incompreensíveis que pairam como um clima de omissão.
Outro passo interessante dos Caminhos é a Fazenda do Pontal, uma réplica da Fazenda Doze Vinténs ou Fazenda dos Doze, que pertencia ao pai de Drummond e que deu origem, diz a crítica, ao poema “Infância” – poema cujos primeiros versos servem hoje de mote para festas de peão. A réplica aconteceu, a recriação do ambiente da infância drummondiana não. No lugar dos campos onde o pai campeava, hoje, do imenso espaço vazio dentro da casa, a vista que se tem é uma formosa lagoa de rejeitos da mineração. Ao fim e ao cabo, o passeio pode concluir-se com a visita ao Centro Cultural Carlos Drummond de Andrade, defronte à Igreja Universal do Reino de Deus, e encontrar o poeta que tanto criticou a mineração, em uma cidade onde tudo Vale magistralmente, sentado em uma pedra de minério, chegando à conclusão de que em Itabira “tudo Vale à pena”.
A cidade teve seu momento de levantar o poeta às alturas. Os hotéis, a casa de Drummond, a fazenda dos avós de Drummond, o Centro Cultural, etc., jogam com essa idéia do poeta como ícone pop da cidade. A cidade procura criar uma indústria que movimenta a cultura ao redor da imagem do poeta. Existe até mesmo uma pesquisa em andamento sobre essa relação da mineração da Vale com o uso de Drummond como o novo principal motor da economia da cidade. Vamos aguardar as conclusões do pesquisador, doutorando em Administração na UFMG, Prof. Luiz Alex Saraiva.
“Yo no creo en poetas, pero que los hay, los hay”, seria uma possibilidade de afirmação reflexiva que nos incita a entender a – mais do que acreditar nela - existência de seres separados das pessoas “normais” que podem se expressar de forma diferente destas no contexto contemporâneo. Os poetas seriam seres mágicos que alcançam um status diferente dos outros seres. Seriam os “capazes” de constituir “outra coisa” que não o “texto comum”. Seriam os criadores da linguagem impossível que pode ser compreendida sem ter compreensão. Seriam os que fazem a alienação em movimento de aproximação do texto com o leitor. Construtores do oximoro.
Podemos ensaiar que a decadência do poeta Carlos Drummond de Andrade que vimos em Itabira – no abandono dos espaços com o não envolvimento dos cidadãos da cidade neles – é sinal de um movimento que há contemporaneamente em se entender os artistas como pertencentes apenas a lugares específicos (nos meios especializados; nos meios intelectuais; nos centros culturais; nos usos políticos específicos; etc.), separados do restante da população. Por mais que o poder público tente incluir o poeta como ícone da cidade (incentivando os hotéis a fazê-lo, colocando estátuas e homenagens nas ruas, criando eventos como feiras da produção com frases do Drummond nas placas, etc.), o artista (e sua imagem celebrada) se torna separada e distante do cotidiano das pessoas. Desse modo, cada coisa fica em seu lugar.
Essa decadência é sinal de frustração. Essa frustração não deve ser vista como pessimista, mas como negativa. Um poeta com os versos de Drummond sendo negado no cotidiano é sintomático. Um poeta que canta o cotidiano não ser escutado mais a não ser nos ecos de seu nome é algo estranho que aliena (de outro modo) o escrito. Até mesmo as condições precárias de manutenção a que a memória do célebre está relegada é uma prova de que a frustração pede passagem em busca de uma mudança de recepção dessa produção: de passiva para resistente.
Por fim, este texto segue a tradição Drummondiana sobre a qual versa a história de existir uma pedra no meio do caminho. Em Itabira essa pedra está quase destruída. Ufa! Da destruição espera-se que nasça algo em contraponto. E agora, no meio dessa balbúrdia, o que nos resta? Resta-nos criar mais um espaço cultural: o Centro Cultural Buraco do Cauê (CCBC ou CeCuBuCá, o que fica quase uma linguagem do macaco - guinlagem camaco - como foi-nos ensinado pelos nativos e/ou não). No fundo, encontramos o pico destruído e o poeta em decadência sentado em uma pedra. A nossa proposta é de outra coisa surgir em meio aos escombros. O que será? Não sabemos. Queremos discutir na praça pública como fizemos quando passamos por Itabira, com os vigias, seguranças e outras pessoas. A cidade de Drummond vale muito a pena ser conhecida.
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